Para o movimento indígena, a iniciativa, inexistente nos governos anteriores, busca enfraquecer seus parceiros

Fabiano Maisonnave

MANAUS

O governo Jair Bolsonaro (PSL) incluiu entre as atribuições da Secretaria de Governo, comandada pelo general Carlos Alberto dos Santos Cruz, o monitoramento e a coordenação de ONGs e de organismos internacionais. Para o movimento indígena, a iniciativa, inexistente nos governos anteriores, busca enfraquecer seus parceiros.

Na medida provisória (MP) 870, que reorganizou as atribuições no Poder Executivo, lê-se que compete à Secretaria de Governo "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”.

Em postagem no Twitter nesta quarta (2), Bolsonaro acusou ONGs de explorar e manipular indígenas e quilombolas, mas sem apresentar evidências.

Jair M. Bolsonaro 
@jairbolsonaro

Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros.

15,8 mil pessoas estão falando sobre isso

"Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”, escreveu.

"Se o propósito da medida fosse o de facilitar uma relação construtiva entre grupos internacionais da sociedade civil e o governo no seu mais alto nível, seria uma medida bem-vinda”, afirma José Miguel Vivanco, diretor da divisão de Américas da Human Rights Watch. 

"No entanto o que me chama a atenção é o uso dos termos 'supervisionar' e 'monitorar', que sugerem uma falta fundamental de compreensão do papel independente que essas entidades desempenham em qualquer sociedade aberta e democrática.”

​Para Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), além de esvaziar a Funai (Fundação Nacional do Índio), transferindo a atribuição de demarcação para o Ministério da Agricultura, Bolsonaro “está partindo pra cima dos apoiadores que atuam em defesa dos povos indígenas”.

“As ONGs trabalham na defesa territorial e nas demarcações e ajudam a denunciar violência contra os indígenas”, afirma Tuxá, que atribui a medida à aliança de Bolsonaro com as bancadas ruralista e evangélica.

"O temor é de que o governo terá aval para nos dizimar. Vivemos um cenário de 1500, querem nos colonizar. Mas não vamos nos calar, vou dar o meu sangue em favor dos povos indígenas”, diz o líder da maior organização indígena do país.

"Ficamos muito felizes em saber que o governo vai acompanhar de perto as ONGs”, ironiza Nilo D’Ávila, diretor de Campanhas do Greenpeace Brasil, de atuação socioambiental. "Assim vai poder tomar providências rapidamente sobre as denúncias de grilagem de terra, desmatamento ilegal, exploração ilegal de madeira, fraudes em licenciamento e outros absurdos que vivem sendo denunciados pelas ONGs.”

A reportagem tentou contato com o general Santos Cruz via WhatsApp e celular, mas não obteve resposta.

INCONSTITUCIONAL

Para a diretora executiva da ONG Conectas Direitos Humanos, Juana Kweitel, o controle da sociedade civil não é atribuição da Presidência da República.

"Esta medida é abertamente ilegal, pois a Constituição veda expressamente qualquer tentativa de interferência estatal no funcionamento das organizações. Essa norma precisará ser revertida seja por meio de uma nova MP ou do Judiciário. A democracia precisa de uma sociedade civil livre e atuante”, diz Kweitel, cuja organização tem status consultivo na ONU.

Na avaliação da pesquisadora da Escola de Direito da FGV-SP, Aline Gonçalves de Souza, o Brasil já possui mecanismos de controle de ONGs, incluindo o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei 13.019/14), entre outras normas. 

"No entanto essa nova atribuição encontra limite na Constituição Federal que assegura a liberdade de associação para fins lícitos e a vedação da interferência estatal no funcionamento das associações”, explica a advogada.

"Diante dessa novidade, é importante acompanhar a tramitação da MP para que as competências da Secretaria de Governo sejam compatíveis com a previsão constitucional, bem como se esclareça em regulamentação os limites da nova competência”, completou.

Erramos: o texto foi alterado

O número da medida provisória que reorganizou as atribuições do Poder Executivo é 870/19, e não 780. 

Folha de S.Paulo


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