Financeira, militar, ecológica e social, as bombas produzidas pelos países desenvolvidos estão prontas para estourar.

Por Carlos Drummond

               

                      
Discípulo fervoroso do neoliberalismo extremado, em especial a partir de 2016, o Brasil está vulnerável às piores consequências da crise cada vez mais grave do modelo instalado pelo Consenso de Washington na década de 1990.

Um número crescente de analistas alerta para o esgotamento da fórmula composta de regras de estabilização macroeconômica, abertura comercial e financeira, expansão das forças do mercado e privatização, um dia considerada indispensável ao bem-estar do mundo, até porque não haveria alternativa segundo a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher.

Em que pese os avanços do PIB e do comércio mundiais em 2018, vários especialistas de reputação mundial não veem a médio e a longo prazo perspectivas de consolidação de um crescimento sustentável com demanda e investimento firmes e redução da desigualdade.

O Brasil, com mercado interno aberto sem restrições às importações e aos investimentos estrangeiros, em meio ao avanço mundial do protecionismo, base produtiva e de recursos minerais e energéticos em processo de desnacionalização, economia reprimarizada e endividamento privado elevado, oferece hoje liberdade e oportunidades sem paralelo para produtos e capital estrangeiros, enquanto rifa em simultâneo o seu próprio futuro. As consequências, sabe-se, recairão com grande intensidade sobre a parcela mais frágil da população desempregada, subempregada, ou nem isso.

Na raiz do ceticismo quanto à possibilidade de uma retomada consistente da economia mundial está um endividamento público e privado colossal, segundo o Fundo Monetário Internacional, que na quarta-feira 18 alertou: “A dívida global atingiu recorde histórico e os governos devem começar a reduzi-la já”.

Em 2016 o FMI contabilizou 164 trilhões de dólares e a situação das economias avançadas em termos de nível de endividamento em comparação ao PIB é pior que a dos países de baixa renda. O valor corresponde a 225% do PIB mundial, segundo informou a publicação Fiscal Monitor da instituição na edição de abril, um acréscimo de 12 pontos porcentuais em relação ao recorde anterior de 2009 logo após a eclosão da crise financeira mundial.

“Essas constatações e o ciclo de negócios significam que os governos deveriam construir ‘amortecedores’ e cortar a dívida pública para enfrentar “desafios que virão inevitavelmente no futuro”, alertou Vitor Gaspar, diretor do departamento de assuntos fiscais do FMI. A superação do impasse é mais complexa e arriscada, entretanto, do que sugere a recomendação do Fundo, asseguram vários economistas.

O aviso do FMI foi precedido da realização de um painel na sexta-feira 13 sobre o mesmo tema e várias das suas implicações no South Centre, organização intergovernamental com sede em Genebra, na Suíça, integrada por 54 países em desenvolvimento, Brasil incluído, e que os ajuda a combinar esforços e conhecimentos para promover interesses em comum no plano internacional.

As principais economias desenvolvidas lideradas pelos Estados Unidos “caminham como sonâmbulos em direção à guerra” com sua insistência em políticas fiscais e monetárias insustentáveis desde a crise financeira de 2008 e de consequências destrutivas para as nações em desenvolvimento, advertiram Hervé Hannoun, ex-gerente-geral adjunto do Bank for International Settlements, ou Banco de Compensações Internacionais, considerado uma espécie de banco central dos bancos centrais, e Peter Dittus, ex-secretário-geral da instituição.

No debate “Uma Revolução É Necessária. A bomba-relógio do modelo do G-7”, os economistas, autores de livro com o mesmo título, argumentaram que “as políticas monetária, fiscal, macroeconômica, de defesa e contra o superaquecimento global têm uma característica em comum: são negligentes, imprudentes e irresponsáveis.

Aprendizes de feiticeiro construíram um esquema de crescimento impulsionado pela dívida que está levando diretamente para o próximo crash financeiro. Essas políticas são apresentadas como sendo de interesse público. Não surpreende que a confiança nos formuladores de políticas e instituições públicas esteja se desgastando. As pessoas sentem que algo está errado com o modo como as elites do G-7 estão se desincumbindo das suas responsabilidades.

A trajetória atual das suas políticas econômicas está levando a uma crise sistêmica que colocará em questão muitas das crenças nas quais o sistema capitalista é construído.” G-7 é o nome do grupo formado em 1977 por Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Japão, França, Reino Unido e Itália.

Hannoun e Dittus propõem uma mudança radical rumo a um modelo sustentável que use pouco carbono, detenha a escalada militar, coloque o interesse comum à frente dos interesses de poucos e distribua os frutos econômicos de um modo mais equitativo.

Nessa revolução, “o Estado e as políticas públicas devem desempenhar um papel crucial e maior do que servir aos interesses principalmente financeiros, como aconteceu nas últimas décadas”, argumentaram.

Uma grande mudança é um imperativo, disse, para o mundo evitar as piores crises em várias frentes simultaneamente. “As políticas monetárias extremas seguidas pelos sete países mais ricos desde 2012 minaram os alicerces da economia de mercado. A ‘bomba de tudo’ financeira, militar, ecológica e social construída pelo G-7 está pronta para estourar na sequência de uma quantidade sem precedentes de bolhas de preços de ativos infladas nos últimos sete anos de taxas de juros próximas de zero ou negativas”, disparou Dittus.

Uma bolha forma-se quando as cotações de títulos públicos, ações ou imóveis, entre outros ativos, se desviam em muito da sua média histórica, criando oportunidades para especulação e outras distorções. São exemplos do fenômeno os colapsos do setor de poupança e empréstimos nos anos 1980, das empresas de internet e tecnologia nos anos 2000 e das hipotecas de má qualidade em 2008, todas nos Estados Unidos e com consequências mundiais.

A ‘bomba de tudo’, explicaram os ex-dirigentes do BIS, seria a junção de quatro bombas-relógio que, no seu entendimento, mais cedo ou mais tarde levarão a uma crise do modelo G-7: a dívida colossal nos mercados financeiros inundados pela liquidez dos bancos centrais dos países do grupo; o risco de um confronto militar entre o Ocidente (Organização do Tratado do Atlântico Norte, Estados Unidos e União Europeia) e o Oriente (Rússia e China); as elevadas emissões de carbono que aumentam o aquecimento global e ameaçam o planeta; e o perigo de subemprego agudo associado a um crescimento econômico menor e à revolução digital.

Após a crise de 2008, que foi um desdobramento das políticas monetárias e fiscais insustentáveis seguidas pelo Fed dos Estados Unidos e outros bancos centrais nos principais países industrializados, disse Hannoun, os integrantes do G-7 à exceção da Alemanha continuaram a implementar políticas fiscais frouxas e assim aumentaram as dívidas dos governos.

Em consequência, a dívida do governo sobre o PIB no ano passado atingiu 221% no Japão, 157% na Itália, 124% na França, 121% no Reino Unido, 105% nos Estados Unidos, 97% no Canadá e 72% na Alemanha. “A situação remete a 1971, quando o presidente Richard Nixon suspendeu unilateralmente a conversibilidade do dólar americano em ouro, início do exorbitante privilégio estadunidense de imprimir sua moeda e com ela pagar mercadorias e serviços importados."

"Foi assim que os Estados Unidos se tornaram o epicentro das políticas monetárias insustentáveis sem qualquer preocupação com o crescimento dos déficits gêmeos, o fiscal e o de conta corrente. Os EUA exportaram seu modelo ao restante do G-7, que o seguiu religiosamente, à exceção da Alemanha”, sublinhou o economista.

Os EUA elevaram os gastos novos e as reduções de impostos em trilhões de dólares sem outra sustentação a não ser mais dívida, inclusive aquela gerada por isenções fiscais no valor de 1,5 trilhão de dólares para as grandes corporações empresariais, 1,5 trilhão destinado ao plano de infraestrutura e um aumento colossal do orçamento do Pentágono em 700 bilhões. A festa prosseguiu, disse Hannoun, a despeito do comportamento imprudente dos Estados Unidos. O déficit fiscal projetado para 2019 oscila em torno de 1 trilhão de dólares e não se chegaria a essa situação sem a política monetária permissiva conduzida pelo Federal Reserve desde 2009.

O silêncio, ou a complacência, das três grandes agências de classificação de risco com sede nos Estados Unidos, a Standard & Poor’s, a Moody’s e a Fitch, com a bênção do Fundo Monetário Internacional, expõe a hipocrisia dos responsáveis pela regulação do sistema financeiro”, destacou Dittus. Os bancos centrais do G-7 tornaram-se facilitadores irrestritos da acumulação de dívida.

“Os aprendizes de feiticeiro distribuem incentivos para acumulação de dívida sem limites, a exemplo das taxas de juro nominais próximas de zero ou negativas. Os maiores beneficiários dessa situação são corporações não bancárias que recompram suas próprias ações, aumentando assim a alavancagem ou a multiplicação das chances de ganho por meio do endividamento contraído essencialmente para agradar aos seus acionistas.”

A dívida total dos sete principais países desenvolvidos foi estimada em torno de 100 trilhões de dólares no terceiro trimestre do ano passado. Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Japão e a Zona do Euro representam 64% da dívida total mundial. “As políticas monetárias fundamentalistas extremas seguidas pelo grupo desde 2012 solaparam os alicerces da economia de mercado”, diagnosticou Hannoun.

Além disso, disse, a distorção dos preços de todos os ativos por causa da intervenção dos bancos centrais nos últimos seis anos introduziu um significativo elemento de comando das economias do G-7, que se moveram rumo a um regime de mercados financeiros centralmente planejados.

“A consequência é que o modelo do G-7 não segue mais o livro-texto da economia de mercado, na medida em que as taxas de juro de longo prazo são manipuladas e falham ao não espelhar os chamados fundamentos. As políticas monetárias do G-7 são o elemento comum à maior parte dos excessos especulativos observados nas negociações de títulos do governo, ações e imóveis.”

O Fed lidou com o estouro de cada bolha de ativos nos últimos 20 anos criando outras bolhas ainda maiores. Pior, a inflação de preços de ativos criada pelos bancos centrais é um fator-chave para o aumento da desigualdade, chamaram atenção os autores do livro. “A mais assustadora bolha de preços de ativos é a de títulos do governo de Japão, Alemanha e França, com rendimentos nominais de títulos de 10 anos entre zero e 1 por cento”, afirmaram os economistas.

“Ao abusarem do quantitative easing (política de abarrotar o mercado com dinheiro mediante a compra continuada de títulos públicos no mercado), os bancos centrais do G-7 correm o risco de enveredar pela ladeira escorregadia que ultimamente conduz à monetização da dívida do governo”, receiam os autores do livro.

A monetização consiste no financiamento de operações do governo pelo Banco Central. As políticas monetária e fiscal seguidas pelos sete principais países desenvolvidos resultaram na “captura” da primeira pelos mercados e na “captura regulatória” das instituições de supervisão e controle pelos grandes bancos. Nesse processo, governos e agências reguladoras fizeram-se reféns do setor financeiro e seu trabalho foi assim anulado.

Durante a discussão em Genebra o ex-presidente do Banco Central da Índia Yaga Venugopal Reddy ressaltou a necessidade de “rebalanceamento em várias frentes entre as economias nacional e global, o Estado e o mercado, a finança e o mundo real. Tampouco é aceitável a adoção de um único modelo para todos os países.

A crise financeira atual tornou-se um colapso econômico transformado em flagelo social com desdobramentos políticos que nós ainda não somos capazes de entender plenamente. O ataque ao multilateralismo é, na verdade, um ataque da crise das finanças globais e suas consequências”.

Sobre a abrangência do poder das instituições bancárias e similares, Reddy citou o exemplo de como ele próprio foi dissuadido por altas autoridades de Nova Délhi e Washington de mencionar em um discurso a possibilidade de adoção da Taxa Tobin, um imposto sobre todas as transações financeiras internacionais proposto pelo Prêmio Nobel James Tobin.

O economista-chefe do South Centre, Yılmaz Akyüz, chamou atenção para “a impunidade com que os Estados Unidos puderam adotar políticas monetária e fiscal tão perigosas, dado o privilégio exorbitante proporcionado pelo fato de o dólar ser a âncora do sistema monetário internacional”. A política monetária estadunidense, disse, tornou-se progressivamente frouxa desde os anos 1980 na busca do crescimento.

Uma das principais razões disso é a desigualdade na distribuição de renda, que cria um problema de demanda efetiva. “Quando essa situação ocorre, o investimento torna-se muito pequeno. Assim, os salários permanecem defasados em relação ao crescimento da produtividade e isso permite também a expansão monetária sem receio de aumentar a inflação, já que esse processo ocorre geralmente a partir de um empurrão salarial. Desse modo o Fed tem trazido para baixo a taxa de juro real e, na medida em que isso acontece, a dívida do G-7 sobe e a do Terceiro Mundo também. E todo boom acaba em uma explosão”, alertou Akyüz.

Cada ciclo de booms e explosões torna a situação pior, disse, por meio da distorção da distribuição de renda e da alocação de recursos e, assim sendo, requer bolhas ainda maiores. Depois da crise das instituições de poupança e empréstimo dos anos 1980, os Estados Unidos baixaram a taxa de juros para quase zero e, no início dos anos 1990, fizeram o mesmo. Após a bolha “pontocom” das empresas de internet e tecnologia, cortaram novamente a taxa de juros, criando a bolha das hipotecas subprime. E agora estão em um percurso de mão única de modo que, após cada estouro de bolha, há a necessidade de outra ainda maior para manter o ritmo, explicou Akyüz.

O mundo está viciado em dinheiro barato e acumulou um montante massivo de dívida nos países ricos ao Norte e nas nações mais pobres ao Sul, resume o economista: “No Sul, há endividamento principalmente das empresas e das famílias. No Norte, há mais dívida fiscal, dívida pública. E, na discussão das fontes de recursos do setor público e do financiamento para o desenvolvimento, deve-se começar a partir do Norte, porque eles têm uma dívida muito maior e suas políticas fiscais têm consequências muito mais importantes para a economia global”.

Como foi que o Terceiro Mundo entrou na canoa furada da acumulação de dívida iniciada nos Estados Unidos? Há uma série de motivos, explica o economista-chefe do South Centre, e um deles é a dificuldade em resistir às ondas econômicas. “Em primeiro lugar, se um país se abre para o comércio e o investimento estrangeiros, não pode facilmente fechar o lado financeiro. Em segundo lugar, quando o dinheiro ingressa em grande quantidade, há um encorajamento à liberalização das restrições, porque assim parte dele pode sair do país.”

O controvertido ex-presidente francês François Hollande estava, portanto, coberto de razão quando denunciou os excessos do sistema financeiro global em 2012: “O meu inimigo é a finança”. O desabafo custou-lhe críticas duras e ridicularizações, mas “é inegável que um monstro foi criado e ainda não está sob controle”, analisa Hannoun.

Cada vez mais, diz, parece que a Grande Crise de 2008 pode ter sido apenas um ensaio geral para algo ainda pior, que virá como resultado do uso excessivo da emissão de dinheiro, do acúmulo de bolhas de preços de ativos e de dívidas encorajadas por taxas de juros baixas ou negativas. Das duas causas profundas do colapso, apenas a microeconômica foi parcialmente resolvida através de uma reforma regulatória que visava incrementar os ‘amortecedores’ de capital dos bancos e o gerenciamento e os incentivos ao risco.

Segundo Dittus, “as causas da política macroeconômica, as falhas do modelo de crescimento impulsionado pela dívida e a combinação de políticas frouxas que levaram à débâcle permanecem em vigor”. 
                  
               


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