A triste e trágica combinação da profunda crise econômica com o processo eleitoral coloca, de forma inescapável, a necessidade de se discutir o caminho trilhado com a adoção do austericídio e as alternativas de política econômica que se colocam para o próximo mandato.
Por Paulo Kliass*
A imensa dificuldade enfrentada pelos candidatos da direita, identificados com o financismo e patrocinados pelo establishment, oferece a medida do grau de desaprovação dessa estratégia que se limita a sugerir corte e mais cortes no orçamento público, ainda mais em uma conjuntura que avançava claramente para a recessão da economia. Os candidatos que se apresentam como herdeiros da aventura criminosa do golpeachment e da política de destruição levada a cabo pelo governo Temer estão recebendo nas pesquisas de intenção de voto o retorno das maldades cometidas.
Pouco a pouco se consolida a ideia de que o equívoco, iniciado ainda com Joaquim Levy em 2015, deve ser urgentemente desfeito. Isso implica em desmontar um conjunto de medidas que só têm provocado o agravamento das dificuldades para se sair da maior recessão de nossa História. Assim, a maior parte dos candidatos já reconhece a necessidade de se promover um referendo revogatório para eliminar entraves como a EC nº95, a chamada PEC do Fim do Mundo, que pretendia congelar os gastos públicos por longos 20 anos. Ou também as perversidades contidas na Reforma Trabalhista, que nos fez retroagir décadas em termos de direitos dos trabalhadores e da capacidade da demanda interna. Ou ainda os efeitos das privatizações desavergonhadas da Petrobrás, da entrega do Pré Sal para as multinacionais e das vendas de patrimônio público a preço de banana nos setores de eletricidade e infraestrutura.
O estrago do austericídio e a volta por cima
Ocorre que o estrago provocado pela opção “competente” da duplinha dinâmica Meirelles & Goldfajn tem sido impressionante. A abordagem conservadora tem insistido até agora na necessidade de promover o ajuste às custas da grande maioria da população, sempre livrando o ônus daqueles que têm mais ganhado com a crise. As contas públicas foram estraçalhadas e isso provoca um grande esforço para recolocar a economia na rota de crescimento do PIB e criar as bases para recuperar um projeto nacional de desenvolvimento.
O problema permanece na busca de novas fontes de financiamento para tal empreitada. O setor público tem recursos disponíveis na Conta Única do Tesouro Nacional da ordem de R$ 1,2 trilhão. Existe a necessidade mais do que urgente de recuperar valores superiores a R$ 2 trilhões de dívida ativa, segundo informações da própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Uma Reforma Tributária que passasse a cobrar impostos de quem sempre esteve isento de tal obrigação também deve contribuir para tanto. Se pé bem verdade que o quadro não tão catastrófico quanto nos querem empurra goela abaixo, o fato é que a profundidade da crise não pode ser menosprezada.
Assim, a emergência da conjuntura tem trazido para o centro do debate também a fala dos assessores econômicos dos candidatos à Presidência da República. Com isso, um dos aspectos que começa ser debatido refere-se à possibilidade de serem utilizadas as Reservas Internacionais também como fonte de recursos para esse tipo de financiamento que o Brasil tanto necessita. Afinal, o estoque mais recente registrado pelo Banco Central para esse tipo de ativo financeiro soma US$ 383 bilhões. Atualmente ocupamos a 10ª posição no mundo, como se pode observar pela tabela abaixo:
Ao contrário do que pode sugerir o senso comum, o valor das reservas internacionais não guarda relação direta com o poderio econômico dos países. Basta ver que Estados Unidos, Alemanha, França e Inglaterra, por exemplo, estão todos em um patamar inferior a US$ 200 bi. Mas para países que não contam com uma moeda forte (como o dólar ou o euro), o acúmulo de reservas em ouro ou moeda estrangeira pode operar como uma garantia de liquidez internacional para momentos de maior dificuldade.
Parcelas das reservas para o investimento
Manter esse nível de reservas (ou “carregar”, como se diz no jargão do financês) tem um custo razoável para nosso país. Afinal, os ativos em moeda estrangeira são remunerados a juros baixíssimos e o governo brasileiro oferece a contrapartida interna com títulos públicos que são remunerados com a nossa sempre elevada Selic. Assim, pagamos uma conta de despesa para termos essa segurança contra incertezas no front externo. Trata-se da famosa diferença entre o custo financeiro interno e externo.
Em uma conjuntura de escassez de recursos como a atual, a questão que se coloca é sobre a viabilidade de se recorrer a uma parcela desses valores para estimular o investimento interno em áreas estratégicas, como a infraestrutura. Seria como converter esses ativos, que estão lastreados em moeda estrangeira, em ativos físicos para nossa economia real.
Em primeiro lugar é necessário que não deixemos nos contaminar pelo clima de especulação absurda que os grandes agentes do mercado financeiro já estão patrocinando. O segundo semestre de ano eleitoral costuma ser o momento de mais ataques ao real e de espalhar o clima de terror. Aconteceu em 2002 e 2014, por exemplo, quando a leitura das páginas de economia poderia fornecer a falsa impressão de que o Brasil estava quebrando. Essa escalada do dólar no mercado de câmbio não tem nenhuma relação com os fundamentos de nossa economia. O fato de a moeda norte-americana ter superado a cotação simbólica dos R$ 4,00 já era por demais esperado, uma vez que os poderosos do financismo não se conformam com a insistência do povo insistir em declarar sua preferência por Lula ou por quem o substitua, caso a Justiça insista no golpe de impedi-lo de concorrer. Fazem chantagem na veia, de forma descarada e impune.
Mas a partir de janeiro próximo espera-se que a normalidade democrática e institucional já tenha sido recuperada, com a posse de um novo ocupante legítimo do Palácio do Planalto. E, nesse caso, a alternativa de lançar mão das reservas estará mais uma vez colocada. Parece evidente que tal operação embute algum grau de risco, como quase tudo em economia e nessa quadra de crise ainda mais. Vários estudos avaliam que o nível “ótimo” de reservas para um país, em geral, deveria corresponder a um estoque capaz de assegurar a ele uma folga de 6 meses no valor das importações.
Desnecessário dizer que não existe certeza alguma em matéria de política econômica, mas esse indicador é aceito pelos formadores de opinião como regra básica. Ora, segundo as informações de nossa Balança Comercial, os atuais US$ 382 bi corresponderiam ao total equivalente aos últimos 30 meses das nossas importações. Assim, percebe-se que existiria alguma folga para se recorrer também a essa ferramenta na formatação da fonte de recursos para o próximo ciclo de investimentos.
Como hipótese de trabalho, poderíamos ficar com uma margem de segurança de 20 meses de importações (mais do que o triplo do recomendado) e lançarmos mão de um valor igual a 10 meses para o financiamento da infraestrutura. Isso nos daria a possibilidade de construirmos um programa de US$ 100 bi para que o Estado coordene o modelo dos investimentos necessários no setor.
O debate está aberto. A crise que vivemos é grave e as tarefas colocadas para o próximo governante não serão nada fáceis, em especial no domínio da economia. Como o Brasil não contará mais com a bonança do setor externo que facilitou muito a vida de Lula em seus dois mandatos, a busca por recursos escassos será crucial. Nesse caso, não creio ser recomendável que abramos mão desse potencial oferecido por uma parcela das reservas internacionais.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Pouco a pouco se consolida a ideia de que o equívoco, iniciado ainda com Joaquim Levy em 2015, deve ser urgentemente desfeito. Isso implica em desmontar um conjunto de medidas que só têm provocado o agravamento das dificuldades para se sair da maior recessão de nossa História. Assim, a maior parte dos candidatos já reconhece a necessidade de se promover um referendo revogatório para eliminar entraves como a EC nº95, a chamada PEC do Fim do Mundo, que pretendia congelar os gastos públicos por longos 20 anos. Ou também as perversidades contidas na Reforma Trabalhista, que nos fez retroagir décadas em termos de direitos dos trabalhadores e da capacidade da demanda interna. Ou ainda os efeitos das privatizações desavergonhadas da Petrobrás, da entrega do Pré Sal para as multinacionais e das vendas de patrimônio público a preço de banana nos setores de eletricidade e infraestrutura.
O estrago do austericídio e a volta por cima
Ocorre que o estrago provocado pela opção “competente” da duplinha dinâmica Meirelles & Goldfajn tem sido impressionante. A abordagem conservadora tem insistido até agora na necessidade de promover o ajuste às custas da grande maioria da população, sempre livrando o ônus daqueles que têm mais ganhado com a crise. As contas públicas foram estraçalhadas e isso provoca um grande esforço para recolocar a economia na rota de crescimento do PIB e criar as bases para recuperar um projeto nacional de desenvolvimento.
O problema permanece na busca de novas fontes de financiamento para tal empreitada. O setor público tem recursos disponíveis na Conta Única do Tesouro Nacional da ordem de R$ 1,2 trilhão. Existe a necessidade mais do que urgente de recuperar valores superiores a R$ 2 trilhões de dívida ativa, segundo informações da própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Uma Reforma Tributária que passasse a cobrar impostos de quem sempre esteve isento de tal obrigação também deve contribuir para tanto. Se pé bem verdade que o quadro não tão catastrófico quanto nos querem empurra goela abaixo, o fato é que a profundidade da crise não pode ser menosprezada.
Assim, a emergência da conjuntura tem trazido para o centro do debate também a fala dos assessores econômicos dos candidatos à Presidência da República. Com isso, um dos aspectos que começa ser debatido refere-se à possibilidade de serem utilizadas as Reservas Internacionais também como fonte de recursos para esse tipo de financiamento que o Brasil tanto necessita. Afinal, o estoque mais recente registrado pelo Banco Central para esse tipo de ativo financeiro soma US$ 383 bilhões. Atualmente ocupamos a 10ª posição no mundo, como se pode observar pela tabela abaixo:
Ao contrário do que pode sugerir o senso comum, o valor das reservas internacionais não guarda relação direta com o poderio econômico dos países. Basta ver que Estados Unidos, Alemanha, França e Inglaterra, por exemplo, estão todos em um patamar inferior a US$ 200 bi. Mas para países que não contam com uma moeda forte (como o dólar ou o euro), o acúmulo de reservas em ouro ou moeda estrangeira pode operar como uma garantia de liquidez internacional para momentos de maior dificuldade.
Parcelas das reservas para o investimento
Manter esse nível de reservas (ou “carregar”, como se diz no jargão do financês) tem um custo razoável para nosso país. Afinal, os ativos em moeda estrangeira são remunerados a juros baixíssimos e o governo brasileiro oferece a contrapartida interna com títulos públicos que são remunerados com a nossa sempre elevada Selic. Assim, pagamos uma conta de despesa para termos essa segurança contra incertezas no front externo. Trata-se da famosa diferença entre o custo financeiro interno e externo.
Em uma conjuntura de escassez de recursos como a atual, a questão que se coloca é sobre a viabilidade de se recorrer a uma parcela desses valores para estimular o investimento interno em áreas estratégicas, como a infraestrutura. Seria como converter esses ativos, que estão lastreados em moeda estrangeira, em ativos físicos para nossa economia real.
Em primeiro lugar é necessário que não deixemos nos contaminar pelo clima de especulação absurda que os grandes agentes do mercado financeiro já estão patrocinando. O segundo semestre de ano eleitoral costuma ser o momento de mais ataques ao real e de espalhar o clima de terror. Aconteceu em 2002 e 2014, por exemplo, quando a leitura das páginas de economia poderia fornecer a falsa impressão de que o Brasil estava quebrando. Essa escalada do dólar no mercado de câmbio não tem nenhuma relação com os fundamentos de nossa economia. O fato de a moeda norte-americana ter superado a cotação simbólica dos R$ 4,00 já era por demais esperado, uma vez que os poderosos do financismo não se conformam com a insistência do povo insistir em declarar sua preferência por Lula ou por quem o substitua, caso a Justiça insista no golpe de impedi-lo de concorrer. Fazem chantagem na veia, de forma descarada e impune.
Mas a partir de janeiro próximo espera-se que a normalidade democrática e institucional já tenha sido recuperada, com a posse de um novo ocupante legítimo do Palácio do Planalto. E, nesse caso, a alternativa de lançar mão das reservas estará mais uma vez colocada. Parece evidente que tal operação embute algum grau de risco, como quase tudo em economia e nessa quadra de crise ainda mais. Vários estudos avaliam que o nível “ótimo” de reservas para um país, em geral, deveria corresponder a um estoque capaz de assegurar a ele uma folga de 6 meses no valor das importações.
Desnecessário dizer que não existe certeza alguma em matéria de política econômica, mas esse indicador é aceito pelos formadores de opinião como regra básica. Ora, segundo as informações de nossa Balança Comercial, os atuais US$ 382 bi corresponderiam ao total equivalente aos últimos 30 meses das nossas importações. Assim, percebe-se que existiria alguma folga para se recorrer também a essa ferramenta na formatação da fonte de recursos para o próximo ciclo de investimentos.
Como hipótese de trabalho, poderíamos ficar com uma margem de segurança de 20 meses de importações (mais do que o triplo do recomendado) e lançarmos mão de um valor igual a 10 meses para o financiamento da infraestrutura. Isso nos daria a possibilidade de construirmos um programa de US$ 100 bi para que o Estado coordene o modelo dos investimentos necessários no setor.
O debate está aberto. A crise que vivemos é grave e as tarefas colocadas para o próximo governante não serão nada fáceis, em especial no domínio da economia. Como o Brasil não contará mais com a bonança do setor externo que facilitou muito a vida de Lula em seus dois mandatos, a busca por recursos escassos será crucial. Nesse caso, não creio ser recomendável que abramos mão desse potencial oferecido por uma parcela das reservas internacionais.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Fonte: Vermelho, 23 de agosto de 2018.