OPINIÃO:
Por Arthur Maria Ferreira Neto
Indubitavelmente, o respeito à legalidade representa um dos pilares do Sistema Tributário Brasileiro. Por meio dessa garantia, o Estado, sempre que pretende exercer o seu poder de tributar com o intuito de tomar para si parcela de riqueza dos cidadãos, encontra-se obrigado a editar ato legislativo. Por isso, somente pela produção de lei específica é que o Estado está autorizado a criar tributo, sem prejuízo da observância das demais garantias previstas no texto constitucional. A legalidade, portanto, é uma forma de se proteger o contribuinte e de se limitar o poder estatal na imposição de tributos.
No entanto, a mesma legalidade tributária possui outra dimensão constitucional que algumas vezes passa despercebida. Essa dimensão não impõe ao Legislativo um limite, mas lhe atribui uma prerrogativa, a qual reconhece que o legislador tributário tem certo grau de discricionariedade e de soberania — enquanto representante do povo — para eleger o momento em que irá exercitar as suas competências tributárias. Por isso, é compartilhada a visão de que legislador não pode ser levado, contra sua vontade, a criar ou a aumentar determinado tributo por imposição de outra esfera de Poder, mesmo que esteja em jogo determinado valor constitucional que possa necessitar financiamento ou direito fundamental que possa ser melhor custeado.
Para melhor ilustrar, pode-se recordar o caso do imposto sobre grandes fortunas previsto no artigo 153, VII, da Constituição, o qual, por ausência de vontade política, até o momento não veio a ser criado por lei, não sendo viável ao Poder Executivo ou Judiciário querer preencher essa lacuna legislativa, ao argumento de que tal arrecadação irá ajudar no combate à redução das desigualdades sociais que assolam o país.
Com efeito, a legalidade tributária, nessa outra perspectiva, representa instrumento de respeito à separação de Poderes, em que a Constituição reconhece que compete exclusivamente ao Legislativo decidir democraticamente questões de política fiscal que envolvam o exercício de suas competências tributárias, cabendo, portanto, apenas a esse Poder avaliar o momento adequado para a criação, para a majoração (e, por consequência lógica, para a supressão) de tributos que estão na sua esfera de atribuições.
Portanto, nesse esquadro constitucional, não possuem o Executivo e o Judiciário legitimidade democrática para fazer análises de custo-benefício sobre o adequado volume de carga tributária a ser exigida pelo Estado, de modo que não estão autorizados a suplantar decisões parlamentares que disponham sobre o querer criar, aumentar ou reduzir determinado tributo. Partindo-se dessa premissa, chama atenção a recentíssima manifestação do ministro Edson Fachin, o qual, na qualidade de relator da ADI 5.794, veio a antecipar seu voto sobre a medida cautelar requerida por inúmeras entidades sindicais. Em sua manifestação judicial, veio a reconhecer que haveria plausibilidade no argumento que suscita ser inconstitucional a Lei 13.467/17 no ponto em que incluiu, no texto do artigo 578 da CLT, a expressão “desde que prévia e expressamente autorizadas” (pelo trabalhador), de modo a tornar facultativo ao não associado a sindicato o recolhimento da “contribuição sindical” até então compulsória (e por isso dotada de natureza tributária).
Entendeu o ministro Fachin que haveria vício de inconstitucionalidade no caso, uma vez que a modificação do artigo 578 da CLT teria provocado desvirtuamento do modelo sindical previsto no texto da Constituição de 1988, o que geraria enfraquecimento de direito social a representatividade sindical, na medida em que suprimidos os recursos financeiros obrigatórios destinados àquelas entidades. Defendeu, ainda, em seu voto que, em relação à contribuição sindical, existiria um dever fundamental de exercício de competência tributária, o que impediria a supressão desse tributo, bem como que teria havido violação ao artigo 113 do ADCT, pois o projeto de lei que culminou na Lei 13.467/17 não teria sido acompanhado de estudo de impacto orçamentário-financeiro.
Os argumentos presentes nesse fundamentado voto merecem ser discutidos com profundidade, não apenas por partirem da autoridade de um ministro do STF, mas especialmente porque colocam em cheque lições basilares do Direito Tributário brasileiro, obrigando aqueles que se dedicam ao estudo desse ramo jurídico a refletirem acerca da retidão e coerência de elementos que até o presente momento foram aceitos sem maiores discussões e ressalvas.
Os argumentos apresentados pelas entidades sindicais representadas nessa ADI são, em síntese, dois: um de ordem consequencialista, outro de ordem normativa e formal. O primeiro pode ser sintetizado como sendo a relevante “queda na arrecadação” dos recursos até então destinados aos sindicatos (supostamente uma redução de 80% a 97%). O segundo invoca um possível desrespeito formal à Constituição quanto ao tipo de lei utilizada pelo Congresso Nacional ao suprimir a compulsoriedade no recolhimento da contribuição sindical, sendo que, segundo alegam, seria necessário o uso de lei complementar, e não de lei ordinária, como ocorreu no caso.
Analisemos o segundo argumento — de mais fácil enfrentamento — e deixemos o primeiro para momento posterior, até porque essa alegação formal nem sequer chegou a ser enfrentada pelo ministro Fachin em seu voto (em verdade, o argumento de ordem formal trabalhado pelo ministro foi de distinta natureza). De pronto, deve-se rejeitar a suposta necessidade de lei complementar no caso, pois é consenso na doutrina (e.g., Paulsen, 2017, p. 101) e postura já pacificada junto ao STF (e.g., RE 635.682) aquela que afirma bastar lei ordinária para a criação de contribuições cuja competência tributária esteja previamente fixada no texto da Constituição, cabendo lei complementar tão-somente no caso de criação de contribuições de seguridade social residuais, ou seja, aquelas que partam da competência residual prevista no artigo 195, parágrafo 4º, da CF/88.
Assim, a remissão à lei complementar nos artigos 146 e 149 da Constituição refere-se apenas à necessidade de observância das normas gerais de Direito Tributário (por exemplo, o CTN), o que, de nenhum modo, exige que todas as contribuições já expressamente previstas na Constituição sejam criadas por lei complementar. Aliás, se assim fosse, a quase totalidade das contribuições hoje sendo cobradas seriam também inconstitucionais. No caso, a contribuição sindical representa espécie de contribuição de interesse de categoria profissional e econômica expressamente prevista na parte final do artigo 8, IV, da CF/88, estando, portanto, no âmbito de competência de lei ordinária (Ferreira Neto, 2006, p. 140-1).
Afastada essa suposta violação formal à Constituição, cabe agora enfrentar o argumento consequencialista apresentado pelos entes sindicais, os quais destacam a enorme perda arrecadatória que sofreram após a extinção da compulsoriedade da contribuição sindical, a qual, conforme relatam, representou redução de até 97% no volume de receita a eles destinada em comparação com o ano anterior.
Sem desejar manifestar insensibilidade às dificuldades financeiras que poderão ser enfrentadas pelas entidades sindicais após o fim da compulsoriedade da exação sindical, entendemos que o problema envolvendo a validade da alteração introduzida pela Lei 13.467/17 no artigo 578 da CLT deve ser analisado prioritariamente com base nas diretrizes normativas fixadas pela Constituição, e não apenas com base nas consequências econômicas que uma decisão legislativa pode provocar.
Faz-se tal destaque tendo-se plena consciência do novo artigo 20 da LINDB, o qual impõe que uma decisão de ordem pública deva levar em consideração as “consequências práticas” do respectivo conteúdo decisório e não apenas a invocação de “valores jurídicos abstratos”. Tal novel dispositivo não pode ser interpretado como estando a introduzir no ordenamento jurídico brasileiro a prevalência do pragmatismo ou do utilitarismo. Na verdade, bem interpretada, tal disposição legal apenas representa um alerta para que as consequências previsíveis e estimáveis de uma decisão sejam, em sua fundamentação, abertamente consideradas e expressamente enfrentadas, não podem ser elas simplesmente desprezadas quando da deliberação prática acerca do correto ou do melhor percurso de ação a ser adotado pelo Estado.
Assim, o puro e irrestrito consequencialismo deve ser severamente rejeitado como modo de se raciocinar e argumentar no direito, pois ele permite introduzir um absoluto relativismo axiológico na prática do direito, podendo chegar ao ponto de tornar ponderável a mais firme e categórica das garantias consagradas normativamente na nossa Constituição, diante das possíveis vantagens que o seu desrespeito poderá, em tese, produzir.
Voltando à contribuição sindical, impõe-se concluir que os argumentos consequencialistas não podem ser utilizados para se reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 13.467/17. Isso porque todo ato do legislador que provocar a extinção de tributo ou criar novo regime tributário mais vantajoso ao contribuinte causará, por consequência, uma redução na arrecadação antes projetada e diminuição na capacidade de financiamento das atividades de interesse público que até então buscavam sua fonte de custeio na sistemática de tributação sendo revogada ou modificada.
Logo, se dessa premissa se pudesse extrair a conclusão de que é vedada pela Constituição qualquer escolha legislativa que possa impactar negativamente no potencial de financiamento de um objetivo consagrado na Constituição ou de um direito fundamental nela previsto, será sempre inválido o desejável esforço do legislador em tornar o já extorsivo fardo tributário que todos suportamos em algo mais racional, eficiente ou minimamente suportável.
No argumento de ordem formal, o ministro Fachin defende que teria havido uma “opção inequívoca” da Constituição pelo custeio de atividades sindicais por meio de um tributo, sistemática essa que estaria umbilicalmente conectada com outros dois pilares do supostamente imutável modelo sindical brasileiro (unicidade e representatividade obrigatória), de modo que, suprimindo-se um, cairia por terra os outros dois. Por isso, conclui que “a inexistência de uma fonte de custeio obrigatória inviabiliza a atuação do próprio regime sindical”.
Mesmo que a primeira afirmação não seja propriamente falsa (isto é, a Constituição de 1988, de fato, previu originalmente um tributo para o custeio parcial das atividades sindicais no Brasil), a consequência jurídica que se extrai dessa premissa certamente o é. Isso porque, da previsão constitucional de que o sindicalismo no Brasil poderá ser custeado por uma exigência tributária, não se pode concluir que tal exação não possa ser, por decisão do legislador, modificada ou até extinta. Isso porque a leitura atenta dos dispositivos constitucionais invocados pelo ministro revela que o desejo específico do constituinte foi o de remeter à deliberação legislativa a questão referente ao financiamento das atividades sindicais. Tanto é verdade que o próprio artigo 8º, IV, da Constituição expressamente se vale da expressão “contribuição prevista em lei”, ilustrando, assim, com clareza que sua intenção foi a de remeter a ato do legislador a especificação do regime jurídico a ser adotado em relação à contribuição sindical.
Representa verdadeiro contrassenso ler na Constituição que determinado tema deve estar “previsto em lei” e concluir que seria vedado ao legislador, sob pena de inconstitucionalidade, pretender modificar pela via legislativa o tratamento jurídico dado a esse mesmo tema. Não obstante haja aparência de coerência inferencial das premissas à conclusão no raciocínio do ministro, cabe averiguar se esse modo de raciocinar é, de fato, compatível como o Sistema Tributário Nacional, globalmente considerado e não analisado de modo particularista.
Quanto a esse ponto, caberia inicialmente questionar se seria somente a contribuição sindical um tributo que se prestaria a financiar um direito fundamental social, de modo que somente a ela seria válido o raciocínio de que não seria viável diminuir uma das suas fontes de financiamento sob pena de inconstitucionalidade, uma vez que, retirando-se uma das suas formas de custeio, estar-se-á reduzindo o potencial de financiamento de determinado direito fundamental? A resposta é obviamente não! Todas as contribuições previstas no texto constitucional visam custear diretamente ou promover direitos sociais consagrados na Constituição. Por exemplo, todas as contribuições de seguridade social visam financiar diretamente inúmeras iniciativas de interesse público que se revertem na proteção imediata de direitos fundamentais (por exemplo, a prestação de serviço público de saúde, a proteção da população carente, da família, daqueles inabilitados ao trabalho, a preservação de condições mínimas de vida para idosos e aposentados etc.).
Veja-se, aliás, que se esse fosse o caso estaríamos diante de claras inconstitucionalidades por omissão do legislador, que não estaria criando contribuições de seguridade social suficientes para dar conta do déficit existente nas fontes de financiamento do SUS e da Previdência Social. Mais do que isso, se realmente estivesse presente na Constituição a invocada conexão lógica entre direito social a ser financiado e o dever fundamental de se criar tributo (ou de se impedir a sua redução ou até supressão), todos os benefícios fiscais e setoriais que foram criados nos últimos anos relativamente às contribuições previdenciárias (como, por exemplo, pela chamada “desoneração da folha de salário”) seriam manifestamente inconstitucionais, pois teria o Estado, nesses casos, retirado recursos financeiros que certamente seriam indispensáveis para o custeio de prestações socais de saúde, assistenciais e previdenciárias. E, mesmo que se viesse a argumentar que tal conclusão seria inaplicável às demais contribuições, caberia ao defensor dessa posição melhor fundamentar o silogismo apresentado, justificando de modo expresso o critério diferencial que demonstrasse porque apenas no caso da contribuição sindical (e não das outras) seria válido tal raciocínio causal entre fonte de custeio irrevogável e promoção de determinado direito fundamental social.
Neste ponto, chega o ministro Fachin a sustentar que haveria um desrespeito ao “princípio aristotélico da não contradição” ao se pretender, de um lado, tornar facultativo o custeio das entidades sindicais e, de outro, manter-se a exigência constitucional da unicidade sindical (um único sindicato a cada base territorial) e da representatividade obrigatória (dever de os sindicatos representarem pretensões trabalhistas de associados e não associados).
Ora, é exagero afirmar que a retirada da compulsoriedade das contribuições sindicais culmina em uma contradição ontológica, lógica ou semântica, ao argumento de que, supostamente, a exigência de representação de pretensões de interesses dos trabalhadores pelos sindicatos impõe analiticamente uma conclusão de que tal atividade somente será viável por meio do custeio forçado de tal fim via tributação. Na verdade, as entidades sindicais sempre tiveram outras formas de financiamento voluntário, principalmente pela arrecadação das contribuições confederativas, as quais sempre foram de recolhimento voluntário pelos trabalhadores que manifestam desejo de filiação a um ente representativo de sua classe profissional.
Esse recente julgado merece nossa atenção, não apenas pela aplicação análoga ao caso da alegada inconstitucionalidade do artigo 578 da CLT, mas especialmente em razão do fato de ele ter sido julgado com relatoria do ministro Edson Fachin, o qual certamente desejará, também no presente caso, prestar homenagem aos precedentes vinculantes por ele relatado.
Arthur Maria Ferreira Neto é professor, advogado e vice-presidente do Instituto de Estudos Tributário (IET).
Revista Consultor Jurídico, 25 de junho de 2018;