OPINIÃO

O Brasil hoje é um tubo de ensaio sociológico a respeito dos limites da democracia a ser observado com atenção. O caso Elon Musk é apenas a ponta de um iceberg. Nem de longe é a primeira ou a maior preocupação brasileira no tocante a potenciais desvios do gigantismo de um poder frente aos demais poderes e aos cidadãos. É apenas mais uma crise do nosso sistema em curto circuito infinito.

A democracia brasileira está assentada numa Constituição promulgada em 1988, que já recebeu 132 emendas. Por vezes, no Brasil, ocorre o que chamamos de “jeitinho brasileiro”. Recentemente, os tribunais brasileiros parecem utilizar esse jeitinho para interpretar a Constituição. Mesmo quando aplicado com a melhor das intenções, é um perigo. O brasilianista Keith Rosenn, estudioso do “jeitinho”, diz que o uso desse estratagema pode até mesmo visar a realização de um bem comum. Mesmo assim, é sempre um risco.

É necessário esclarecer algumas ameaças democráticas relativas ao Brasil. Para tanto, trago uma velha advertência do discurso de despedida de Washington: “O amor ao poder traz a propensão para o abuso”. Completarei essa poderosa afirmação com uma frase quase satírica: “Quem nos salvará da bondade dos bons?” — como já advertiu Agostinho Ramalho Marques Neto, proeminente professor brasileiro de Filosofia do Direito.

O uso da democracia militante

O Poder Judiciário não pode ocupar comandos decisórios tão amplos, como está acontecendo no Brasil. O argumento da “democracia militante”, apoiado na teoria de Karl Lowenstein, sempre tenta justificar o comportamento judicial. A essa teoria juntam-se outras nomenclaturas sociológicas, como “democracia-iliberal”, “pretendentes-a-autoritários”, “majoritarismo autoritário”, “decisões contramajoritárias” e assim sucessivamente.

Não que esses argumentos sejam irrelevantes. Ocorre que podem ser facilmente deturpados para, simplesmente, esconderem o nojo de certas elites ao voto, ao povo, àquilo que a constituição de 1988 estabeleceu: um misto de república constitucional com uma democracia liberal. A ideia de uma decisão majoritária não pode ser demonizada por ser majoritária. Um partido que não ganha eleições, que além disso perde nos debates parlamentares, hoje, facilmente derruba uma decisão tomada por um Parlamento eleito e convertida em lei, alegando estar sendo “contramajoritário” e agindo como parte de uma democracia militante.

O argumento da “democracia militante” — e variações semânticas — só pode ser usado com muito espírito crítico e severas cautelas. No Brasil, está vulgarizado. É generalizado o uso de alguns sofismas para justificar, na democracia brasileira, abusos contra as liberdades individuais. O argumento do “fascismo” é parte essencial desse sofisma e justifica os abusos sob a capa da conclusão de Lowenstein: “a democracia deve tornar-se militante”. Aliás, aqui ingressa o perigo da vulgarização desse argumento do combate ao “fascismo”, cujo uso é também muito comum na chamada cultura “woke” (ou cultura do cancelamento).

Lowenstein formulou a afirmação da democracia militante em 1937 contra os horrores do nazifascismo europeu. Até aquele momento, ninguém poderia conceber uma saída melhor do que alertar que o uso dos próprios instrumentos da democracia poderiam implodir os valores mais valiosos da democracia em si. Nesse caso, a democracia teria de se tornar “militante” em sua própria defesa, com a mesma “técnica” do fascismo, concluiu Lowenstein. Notemos bem: com a mesma técnica do fascismo.

Lowenstein, no entanto,  não podia prever algo terrível: no futuro, o uso da sua democracia militante poderia tornar-se uma “técnica” para violar os valores fundamentais da própria Democracia. No fundo, essas “técnicas”, como a democracia militante ou os tribunais contramajoritários, acabaram se convertendo em discursos messiânicos baseados exclusivamente na intenção pessoal de quem estiver no poder. Quase uma crença monárquica nas melhores intenções do rei! Falta pouco para chegarmos novamente ao “The King can do no wrong!”. O rei não erra jamais!

Tentação no Judiciário, abraço de afogados e a solução ex post facto

Membros do Poder Judiciário, já que não são eleitos e não se subordinam a um recall de quatro em quatro anos, podem acabar tendo a tentação de um comportamento quase-monárquico. Não um comportamento como um erro acidental, um deslize ou uma parcialidade involuntária na tomada de decisões, mas uma forma pré-concebida de se comportar, para atingir um objetivo, a qualquer custo ou meio necessário.

Em 2016, o Supremo Tribunal Federal brasileiro anulou a nomeação de um funcionário público, quando a então presidente Dilma Rousseff nomeou o então ex-presidente Lula da Silva para o cargo de chefe da Casa Civil. Uma potencial violação judicial do Poder Executivo de nomear um membro do governo. Àquela altura, os opositores políticos festejaram. Agora, há uma profusão de decisões contra os apoiadores de um governo mais à direita. Os partidos de esquerda festejam no momento! Há um ditado popular que diz “morrer num abraço do afogado”. Os dois espectros políticos perecerão abraçados um dia desses.

Lembremo-nos de Lowenstein, mais uma vez: o fascismo é uma técnica apoiada ex post facto por ideias. Não se baseia nas leis prévias. Obrigar-se a seguir leis prévias é coisa da democracia ou, o que seria melhor, de uma república constitucional. O fascismo usa de ideias posteriores aos fatos ocorridos, culpando a quem quiser de acordo com os humores do detentor do poder naquele momento de decidir. Mas justificando sempre. Sempre haverá uma fundamentação, lançando mão de regras imprecisas, conceitos indeterminados e cláusulas abertas. Eis a primeira — e não a única — culpa do Legislativo no atual estado de coisas: legisla mal ou se omite de legislar, deixando espaços vagos.

Mary L. Volcansek, professora estudiosa do poder judicial, observou que os poderes judiciais são instituições comuns tanto às democracias quanto aos regimes autoritários. Um “poder judicial livre de mecanismos de responsabilização pode bloquear, pelo menos temporariamente, os desejos democráticos e, por conseguinte, ir contra a democracia”.

O que é essencial nas democracias é o sistema de responsabilização dos agentes públicos: inclusive no Judiciário. Os mecanismos de responsabilização dos juízes e dos funcionários não eleitos devem estar presentes desde o processo de recrutamento, seleção e formação, mas, como lembra Volcansek, também na perspectiva da disciplina e do afastamento dos cargos.

Já não se trata de Lula da Silva ou Bolsonaro. Não se trata mais de governos de direita ou de esquerda. Temos de considerar valores democráticos que não podem depender de comportamentos quase monárquicos. A solução ex post facto, invariavelmente, degenera para pior. Há quem festeje hoje e amanhã será vítima.

A grande questão

As democracias ou repúblicas constitucionais (se preferirmos) precisam recuperar o valor dos agentes públicos eleitos, o valor do voto, do Estado de direito e da responsabilidade. A transferência de uma ampla legitimidade de decisão para funcionários não eleitos não terá necessariamente como resultado algo mais justo em longo prazo. Isso pode apenas representar uma degeneração do argumento da democracia militante ou, como tem sido, o argumento dos tribunais contramajoritários.

A grande questão para os próximos anos será como restaurar o Poder Judiciário (e outros agentes públicos não eleitos) aos padrões de uma República representativa, como fora pensada na época da Constituição de 1988.

Isso será complicado, pois todos os formuladores das teorias ao estilo do “Constitucionalismo Abusivo” ou da “Democracia Liberal” partem de um pressuposto: os abusadores estão nos Poderes Eleitos (Executivo, especialmente, e em alguns casos no Legislativo). Raramente, referem-se ao Judiciário e, quando o fazem, é nos casos em que o Judiciário referenda algum abuso do Executivo ou do Legislativo. Em suma, o foco continua sendo os demais poderes.

Cabe referir que tudo isso deverá ser feito sem violar as prerrogativas legítimas do Poder Judiciário. As reações contrárias podem ser mais duras do que o necessário. Cuidado com a volta do pêndulo. Isso deve ser motivo de preocupação. O remédio não pode matar o paciente.