Sou uma jornalista com quase 30 anos de profissão e estou há meses tentando entender como pedir um serviço específico em um aplicativo de governo. Nem eu nem os atendentes telefônicos entendemos a linguagem do aplicativo, e caí em um buraco negro.

Dois conhecidos meus, também com ensino superior completo (em Física e em Publicidade), já receberam notificação judicial a respeito do resultado de uma ação e não conseguiram entender o desfecho. Outros amigos precisam contratar contadores para preencher seu formulário do Imposto de Renda, com medo de incorrer em erro. E são assalariados como a maioria de nós, com um único emprego.

Entender as informações públicas é um direito, um requisito basilar da transparência e do exercício da cidadania. É tão óbvio que há 80 anos existe um movimento internacional sobre o assunto, com mais de 50 países, intitulado Plain Language (em inglês); Lenguaje Claro (em espanhol) e Linguagem Simples (no Brasil).

A Linguagem Simples reúne técnicas de comunicação para que as pessoas consigam encontrar, entender e usar as informações públicas sem precisar ler duas vezes nem pedir explicação a um especialista.

Não se trata simplesmente de “escrever intuitivamente de um jeito que o outro entenda”. Estamos falando de técnicas amparadas por estudos da psicolinguística, neurolinguística e design da informação. Existe até uma norma internacional (ISO) de Linguagem Simples, que está sendo adaptada no Brasil pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Onde entra o Congresso?

Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei (PL 6256/19) que obriga o Poder Público a usar a Linguagem Simples exclusivamente nas comunicações com o cidadão. Sua aprovação vai aumentar a compreensão de sites, aplicativos de serviços, notícias, roteiro automático de telefonia, e-mails, cartas e notificações. 

Há recomendações similares em diversos países, como Estados Unidos, Israel, Argentina, Colômbia, Suécia, Nova Zelândia e Austrália.

A proposta não aumenta os gastos dos órgãos públicos, uma vez que diversos cursos sobre o tema, gratuitos e online, estão disponíveis nas próprias plataformas de governo. Pelo contrário, tornar as comunicações mais eficientes reduz os atendimentos feitos ao cidadão para explicar o que já foi dito.

O texto tem o apoio de mais de cem entidades, com as mais variadas atuações, como a Cátedra em Políticas Públicas da Unesco, a Transparência Brasil, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, a Sociedade Brasileira de Computação e a Rede Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência.

Confusão de conceitos

Ainda assim, o tema vem  sofrendo rejeição de pequena parte dos nossos congressistas, que considera se tratar de uma pauta “de esquerda”. 

Isso impede que a proposta seja votada, apesar de já ter entrado na pauta do Plenário da Câmara por cinco vezes. No bojo dessa rejeição, há desde uma confusão entre Linguagem Simples e linguagem neutra (não existe qualquer interseção entre as duas) até o medo de simplificar obras literárias, em uma clara distorção do escopo da proposta.

Azar do cidadão

Enquanto isso, o Ministério da Saúde diz em seu site que alguns sintomas da Covid são “ageusia e anosmia”. O Ministério da Agricultura divulga publicidade sobre o Plano Safra informando que um requisito é “possuírem o CAR analisado”; e a carta de serviços do Governo diz ao imigrante recém-chegado ao Brasil que ele deve “proceder à solicitação de registro no prazo de noventa dias sob pena de aplicação da sanção prevista no inciso III do caput do art. 307 do Decreto 9.199/2017.”

Sorte é que alguns governos e órgãos, como o Conselho Nacional de Justiça, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas, a Agência Nacional de Águas, diversos tribunais estaduais, os municípios de Jundiaí, São Paulo, Araraquara, Limeira e Cabreúva, os estados do Ceará, Mato Grosso e Rio Grande do Norte recomendam formalmente o uso da técnica.

Mas, por enquanto, falar com clareza é requisito discricionário. E é preciso sim regulamentar procedimentos, pois não se trata de um saber intuitivo.

Encontrar, entender e conseguir usar a informação não são tópicos cobrados pelos órgãos de controle. Conto aqui uma experiência pessoal: em diagnóstico que fizemos em versão anterior do portal da Câmara dos Deputados, ninguém conseguiu entender onde estava um projeto de lei e qual sua última versão. 95% não souberam dizer como uma deputada votou em determinada proposta nem quanto gastou em seu mandato.

Curiosamente, nosso índice de transparência à época obteve nota 8,5, que ostentávamos com satisfação. Ocorre que publicar um dado é só o primeiro passo para que o cidadão não especializado no tema possa usá-lo.

Essa não é uma pauta para polêmicas estéreis ou ideológicas. A Linguagem Simples reduz gastos públicos, desburocratiza e aumenta a eficiência do Estado, facilita ao microempreendedor abrir sua empresa, ajuda o contribuinte a pagar impostos. Linguagem Simples é para todos nós, que não queremos perder tempo.


O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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