SENSO INCOMUM

Na Conferência Nacional da OAB de 2023, em Minas, minha palestra foi a respeito de um tema sobre o qual me debruço de há muito e que, infelizmente, parece não motivar a comunidade jurídica. Trata-se do realismo jurídico. Ou sobre “o direito é o que os tribunais dizem que é”. Está no título: jurisprudencialização.

Spacca

A questão é: se todo poder emana do povo, um direito jurisprudencializado aplicado com base em teses, enunciados e súmulas é democrático?

Alguns pontos:

O Direito próprio do Constitucionalismo Contemporâneo é marcado por um elevado grau de autonomia. Em síntese, isso significa que ele não pode ser corrigido ou filtrado por predadores externos (exógenos) como a política, a economia e a moral (nem pela religião, que integra a moral). Embora sejam fundadores cooriginários ao Direito, a política, a economia e a moral passam a buscar espaços na ossatura jurídica estatal, dentro das regras do jogo democrático.

Daí a pergunta: pode uma lei legitimamente produzida pelo parlamento e que não seja inconstitucional não ser aplicada pelo Judiciário? De pronto, há apenas seis hipóteses nas quais o Judiciário pode deixar de aplicar um texto jurídico (ler aqui quais são).

Na democracia, voluntarismos e ativismos não contribuem para o bom e salutar funcionamento das instituições.

Em um regime democrático, o magistrado faz escolhas apenas em sua vida privada. No âmbito do Poder Judiciário, suas decisões devem necessariamente estar fundadas em argumentos jurídicos, harmônicos com a coerência e a integridade sistêmica do Direito que emana da própria comunidade política.

O precedentalismo no Brasil: o calcanhar de Aquiles do sistema
É bem verdade que o artigo 927 do CPC de 2015 propõe a obrigatoriedade de observância de uma série de mecanismos, materializados nos enunciados de súmulas e nas teses dos tribunais superiores. Também é verdade que, em um de seus parágrafos, o artigo inaugura a figura dos precedentes.

O problema reside nas conclusões que parcela da doutrina brasileira retira de tal fato, quais sejam: primeiro, que o CPC/2015 teria aproximado o Brasil (e, portanto, o seu sistema de civil law) do common law. Segundo, que os provimentos elencados no artigo 927 devem ser considerados, a priori e de forma simplificada, como “precedentes”. O resultado disso é que, para parte da doutrina pátria, estabeleceu-se um sistema de precedentes vinculantes no Brasil, compreendidos como “entendimentos que firmam orientações gerais obrigatórias para o futuro” (Mello; Barroso, 2016).

Um precedente — ou seja, o nome que se dá a um enunciado com pretensão generalizante — não nasce para vincular. Ele obriga contingencialmente (pela dimensão da integridade do ordenamento jurídico). É por isso que podemos dizer que um precedente não nasce propriamente um precedente, mas sim que se torna um. Também cabe reforçar que o genuíno precedente não vem ao mundo por razões utilitárias de política judiciária — ou seja, não se estabelece como solução para enfrentamento de questões envolvendo litigiosidade repetitiva, nem para fixação de teses em abstrato.

Penso que o papel que cabe à doutrina, em relação ao tema, é o de questionamento: se, conforme afirmam alguns processualistas, a tese dos tribunais já conterá os sentidos (pré-intepretação), por que outros processualistas dizem que as teses serão gerais e abstratas? E, se assim não o for, em que medida falar que “o precedente tem uma dimensão objetiva” e que a sua ratio decidendi é a universalização das razões necessárias e suficientes da justificação judicial, no contexto jurídico brasileiro, seria diferente de equipará-lo a uma tese?

Neste sentido, a proposta precedentalista — ou seja, o projeto de transformar um instituto que se forma como tal a partir da atividade interpretativa dos tribunais subsequentes em um sistema de teses abstratas proferidas pelos Tribunais Superiores — claramente incorre em uma tentativa de buscar respostas antes das perguntas, almejando uma solução a priori para problemas interpretativos. Com efeito, as “teses” surgem como respostas prontas para solucionar, de antemão, os problemas que ainda não surgiram.

À luz de qualquer boa teoria do Direito ou da democracia, tal pretensão não se sustenta. Explico: como pode o precedentalismo pretender uma solução para o problema da interpretação, se um precedente também é um texto a ser interpretado?

Basta compreender isso para verificar a carência de fundamentos da ideia de que seria possível dizer que o texto normativo é um equívoco (ou possui equivocidade) e que ao Judiciário caberia dar o “sentido correto” a partir de uma pré-interpretação que depois será vinculante para o sistema. Dentro da lógica democrático do Constitucionalismo Contemporâneo, como seria possível fundamentar adequadamente a excêntrica ideia de que, na democracia, uma lei não vincula e uma tese vincula?

O que se vê, na prática, é que sempre pode caber um “precedente”, qualquer que seja a decisão, sobretudo quando não se precisa explicitar qual é. E, quando se explicita, basta trazer um ementário. Não importa que haja um conjunto considerável de juristas (professores e doutrinadores) que discordam da forma como os Tribunais Superiores colocaram em prática a teoria precedentalista. No Brasil, a academia tem de implorar para que os tribunais ouçam seus pesquisadores.

As decisões falam de outras decisões, que falam de decisões, valendo-se de decisões para decidir. Se o caso não importa mais nas decisões — o descumprimento do artigo 489 do CPC é a prova cabal disso —, como se faz distinguishing de “precedentes citados no atacado”? Quais? Em que casos? Em que circunstâncias? Sem saber qual é a ratio da decisão, não há razão para nos valermos de precedentes para fundamentar.

Faço referência, aqui, a uma cena do clássico Brazil — o Filme (1985), de Terry Gilliam: “a complicação deu uma complicação”. Os puxadinhos hermenêuticos cobram seu preço. Matéria publicada no tradicional portal Consultor Jurídico alerta: “Explosão de reclamações ao STF é sintoma do desrespeito à cultura de precedentes” (Vital, 2022a). Pois é: parece que a complicação deu uma complicação.

“Cultura de precedentes”? O que seria isso? Por acaso uma “cultura” é algo que se estabelece ad hoc, de cima para baixo, com uma importação pela metade simplesmente imposta numa espécie de marco zero de sentido? Ora, cultura que não é orgânica é um paradoxo. Uma contradição em termos.

Veja-se que a suposta “cultura de precedentes” estaria estabelecida pelo rol do artigo 927 do CPC. E porque temos súmulas vinculantes, teses criadas para o futuro. Falar em “cultura de precedentes” diante disso é — peço um milhão de desculpas epistêmicas — um desconhecimento do que seja stare decisis, instituto historicamente desenvolvido ao longo de séculos na teoria clássica do common law, consolidado pela prática e construído à luz da própria ideia de uma constituição histórica. Em contraponto, alguém poderia argumentar: “mas aqui é civil law”. E eu responderia: exatamente. Não fui eu quem inventou isso que chamam por aqui de precedentalismo. Meu esforço hermenêutico-epistêmico é justamente para jogar de acordo com as regras postas. Quem fala em “cultura de precedentes” é o STJ, o STF e parte da doutrina.

Para ser mais claro: nem no civil law é assim. Essa discussão nem se põe. No common law seria paradoxal: a própria palavra “precedente” já pressupõe que se trata de algo não prospectivo, que não nasce como tese “para vincular” no futuro. Ou seja: algo que não é teleológico. Dito de outro modo: no civil law não existe tal coisa, enquanto no common law a coisa é completamente diferente.

Eis que me vejo obrigado a voltar à pergunta, com toda lhaneza: “cultura de precedentes”? Qual? Como? “Cultura” imposta, de cima para baixo, sem qualquer desenvolvimento orgânico? Esse é o ponto. E, pelo bem do debate, há que se tocar nessa ferida narcísico-epistêmica da comunidade jurídica.

Precedentes não são feitos para o futuro. Por isso, teses não são precedentes. Nenhum precedente nasce precedente, é sempre uma leitura retrospectiva. Por maiores que sejam as pretensões dos tribunais, nenhum deles consegue prever as hipóteses de aplicação de um suposto princípio subjacente a uma decisão, mesmo àquelas que alteram entendimentos jurisprudências. Não porque seja questão discricionária, como quer o positivismo. Nenhuma mudança de jurisprudência dispensa a tal exigência de adequabilidade, como exigia Dworkin, num contexto de maior integridade do Direito: a força “gravitacional” é testada a cada caso concreto.

Precedentes não têm “certidão de nascimento”. Permitam-me exemplificar: a “doutrina Brady” não nasceu “doutrina Brady”, como tese abstrata. Foi uma decisão da Suprema Corte dos EUA sobre um caso concreto submetido àquele tribunal. E virou doutrina porque, paradigmática, passou a ser subsequentemente aplicada (ou distinguida — e isso já mostra que precedentes não são teses; como se faz distinguishing de tese abstrata?) pelos tribunais posteriores. A partir de suas propriedades e fundamentos — e não de pretensões normativas na origem.

Veja-se como a moda de “fazer teses” pegou no STF e no STJ. Isso também se pode ver pelos inúmeros enunciados feitos por órgãos do sistema de justiça, como CNJ e órgãos congêneres, como Fonaje e Enfam. Com esta “técnica” de construção de teses (porque, na prática, precedentes são razões generalizantes — como, aliás, afirmam vários precedentalistas), esquece-se uma questão fundamental: a de que são justamente os elementos que ficam de fora que possibilitariam os juízos de identificação e distinção entre casos pretéritos e casos presentes (aquilo que a doutrina anglófona chama de case-by-case formulation and reformulation).

Tudo isso é muito ilustrativo a respeito de como a incorporação dos institutos do common law é artificial no Brasil: enquanto lá os precedentes são tratados como casos, com a menção às partes nele envolvidas (London Tramways v. London County Council; Riggs v. Palmer etc.), nós aqui nos referimos a precedentes como números de processos. Aqui, o “precedente” se transforma em um conceito sem coisa.

Portanto, que “cultura de precedentes” é essa que temos no Brasil? Quero dizer que o tal “boom” de reclamações que mencionei anteriormente não é sintoma de “desrespeito” a uma “cultura”. Não, pelo contrário: é a demonstração cabal de que não existe tal cultura. Porque cultura não se impõe. Assim como não se impõe um precedente. Onde já se viu cultura que não é orgânica e que pretende se impor com força de lei? Onde já se viu precedente prospectivo? Todo país tem seus paradoxos, mas no Brasil estamos exagerando na dose!

As complicações seguem dando complicações. As insuficiências da pretendida “cultura de precedentes” se manifestam também em relação às teses firmadas em Habeas Corpus (Vital, 2022b). Sobre isso, insisto: Habeas Corpus, quando constitucionalmente adequados, geram precedente — isto é, geram um pronunciamento da Corte Suprema sobre um caso concreto, um pronunciamento que é fundamentado e do qual se pode extrair, futuramente, pelos tribunais seguintes, uma razão de decidir. Esta razão de decidir, quando constitucionalmente adequada, cria um padrão a ser observado pelos tribunais subsequentes.

Eis, portanto, o paradoxo ou paroxismo: uma correta decisão em sede de HC deveria sempre ter força de precedente — no sentido correto de precedente, a ser observado e distinguido ou ter seu padrão decisório seguido (quando constitucionalmente adequado) por tribunais subsequentes.

Ora, toda e qualquer decisão paradigmática da Suprema Corte (até mesmo em embargos ou agravo) é passível de se tornar precedente: é o pronunciamento oficial da leitura do órgão máximo do país sobre interpretação constitucional em determinada matéria. Simples assim. Funciona assim no mundo todo.

É bom frisar, para evitar eventuais incompreensões: não se trata de ser “contra” precedentes, mas sim contra o modo artificial como alguns desejam implantá-los e eficientizá-los.

O precedentalismo “à brasileira” como positivismo jurisprudencialista e realismo jurídico “retrô” — é uma ameaça à democracia?

Eis o título da palestra (e deste texto) em forma de pergunta. Um bom autor para me auxiliar na resposta é José Luis Marti, no livro El realismo jurídico: ¿una amenaza para el liberalismo y la democracia? A resposta é afirmativa.

O cotidiano das práticas jurídicas e até o backlash tupiniquim (no Brasil temos uma espécie de backlash sertanejo universitário) mostra isso. Agora mesmo estamos em face de algo desse tipo, depois das pautas que a ministra Rosa Weber deixou antes de sair e que provocaram um certo backlash. Que de certo modo foi feito também pelo STF deixando em suspenso a lei do juiz das garantias por três anos em decisão monocrática. Para dar um exemplo.

Qual seria o precedente que sustentou essa suspensão da lei por três anos? Uma boa pergunta para quem defende a “cultura de precedentes”.

O problema de se criar a idealizada “cultura de precedentes” no Brasil reside no fato de que, até agora, não se enfrentou o problema sobre o que é um precedente. Sobre como e quando eles vinculam. Sobre como precedentes não nascem precedentes, não são para o futuro, nem abstratos.

Trata-se, assim, de um problema de epistemologia e de teoria do Direito, não de desenho institucional e nem de política judiciária. Como falar em “cultura de precedentes” que não “pega” se nem a exigência de fundamentar as decisões “pega”? Se nem a retirada do “livre” do Código impede que juízes sigam decidindo com base na jurássica noção de “livre convencimento”?

Permito-me dizer que o STF e o STJ compraram a tese errada. Precedentalistas venderam uma ideia de teses gerais tribunalícias sob o nome de precedentes. A tese precedentalista assumida pelo STJ e STF tem um problema ainda maior: o realismo jurídico à brasileira. Um positivismo jurisprudencialista. Positivismo fático, em outras palavras. Os tribunais põem o direito (positivismo na origem é “eu ponho” — tese das fontes sociais), por ato de vontade (segundo aconselham os doutrinadores precedentalista). Ato de vontade quer dizer “ponho como penso que deve”, independentemente de qualquer fonte ou história institucional anterior (autorictas non veristas). E aí vem a segunda parte: uma vez posto (criado) o novo direito por meio de uma tese (chamada de precedente), os tribunais querem que o restante do sistema seja textualista (flertando com o aquilo que Ferrajoli chama de paleopositivismo).

Por fim, quando o “textualismo” não “pega”, vem a queixa: o problema é que a “cultura de precedentes” não vinga. A culpa é dos outros. “A complicação deu uma complicação” — para a surpresa de absolutamente ninguém. Mas como algo assim vingaria? Precisamos aceitar a realidade complexa de que o Direito não se resume ao STJ e ao STF — ou sejamos coerentes e fechemos as academias jurídicas.

Numa frase: o que é isto — o precedente? Sem resposta para este ponto de partida, jamais teremos as condições mínimas para cogitar da institucionalização efetiva de um verdadeiro sistema e de uma autêntica cultura de precedentes.

Referências

BARROSO, Luis Roberto; MELLO, Patricia. Trabalhando com uma Nova Lógica: a Ascensão dos Precedentes no Direito Brasileiro. Revista eletrônica Consultor Jurídico. São Paulo, 26 out. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/ar/artigo-trabalhando-logica-ascensao.pdf

STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.

_________ Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020.

_________ Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2023.

VITAL, Danilo. Explosão de reclamações ao STF é sintoma do desrespeito à cultura de precedentes. Revista Consultor Jurídico, 04 dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-04/explosao-reclamacoes-mostra-desrespe ito-cultura-prec edentes/

_________ Teses firmadas em HC são desafio à cultura de precedentes na seara penal. Revista Consultor Jurídico, 05 dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-05/teses-hc-sao-desafio-cultura-precedent es-seara-penal/

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