REFLEXÕES TRABALHISTAS

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A Constituição prevê o princípio da igualdade como um princípio fundamental da existência humana, estabelecendo, no inciso I, do artigo 5º, que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações", além de garantir a proteção ao trabalho da mulher (inciso XX, artigo 7º). Da mesma forma, as normas constitucionais preveem a proteção à família (artigo 226), atribuindo-lhe deveres, como o de "assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem (...) o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação" (artigo 227) e o dever de "amparar as pessoas idosas" (artigo 230).

Apesar disso, em nossa sociedade, percebemos que a tarefa de cuidar das crianças e idosos ainda é responsabilidade (quase) exclusiva das mulheres. Não é incomum, que o homem seja considerado um ótimo companheiro por "ajudar" na educação dos filhos ou nos cuidados com a casa, quando o "correto" seria uma divisão justa das atividades domésticas, já que ambos têm filhos, residem no mesmo espaço e por isso, têm as mesmas obrigações.

Por mais que nós mulheres tenhamos conquistado espaço na sociedade, ainda somos consideradas o "coração da família e a alma da casa", e muitas vezes somos "obrigadas" a renunciar ao sucesso profissional pela "segurança e felicidade conjugal", ou então, acumular as tarefas domésticas ao trabalho remunerado, cumprindo dupla ou tripla jornada.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu Capítulo III, trata da Proteção do Trabalho da Mulher, estabelecendo regras que asseguram direitos e garantias às trabalhadoras.

Porém, se todos são iguais perante a lei, será que ainda faz sentido a existência de normas de proteção ao trabalho da mulher?

Sem dúvida, a resposta é positiva.

Enquanto não houver uma efetiva igualdade entre homens e mulheres, é fundamental a existência de regras que protejam as mulheres, tratando "desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades", especialmente, no que se refere às questões biológicas da maternidade, amamentação, aborto etc. Portanto, são louváveis as regras que, por exemplo, garantem estabilidade à gestante ou intervalos para amamentação.

A questão de difícil resposta é saber quais normas de proteção devem ser mantidas e quais, ao invés de proteger, criam mais discriminação, além de dificultar a inserção feminina no mercado de trabalho.

O artigo 384 da CLT, revogado em 2017, pela Lei 13.467, garantia à mulher a concessão de 15 minutos de descanso antes do trabalho em jornada extraordinária.

Em nossa opinião, o referido artigo, porém, não havia sequer sido recepcionado pela Constituição da República de 1988.

Ocorre, que esse não foi o entendimento exarado pelo TST (RR 1.540/2005-046-12-00.5) e pelo STF (RE 658.312/SC), que afastaram a inconstitucionalidade do artigo 384 da CLT.

O TST, por maioria de votos, entendeu que "por mais que se dividam as tarefas domésticas entre o casal, o peso maior da administração da casa e da educação dos filhos acaba recaindo sobre a mulher", e, dentre outros argumentos, que a mulher é destinada "aos arranjos domésticos, que, por outro lado salvaguardam admiravelmente a honestidade do sexo, e correspondem melhor, pela sua natureza, ao que pede a boa educação dos filhos e a prosperidade da família".

O STF, no mesmo sentido, justificou que a sobrecarga de trabalho da mulher, com dupla jornada, justificaria a concessão do intervalo de 15 minutos. Para a maioria dos ministros, a inserção das mulheres jovens no mercado de trabalho é dificultada por obstáculos como filhos e casamento, ao passo que em função da longevidade, a mulher continua sobrecarregada pois "a carga de trabalho (...) não diminui com o passar do tempo", sendo "até duplicada, apesar de toda a colaboração masculina".

Ora, tal direito, no âmbito constitucional, ao invés de conferir proteção ao trabalho da mulher revela uma indesejada desigualdade entre trabalhadoras e trabalhadores, que além de contribuir negativamente para o aumento da inserção da força laboral feminina no mercado de trabalho, reforça o machismo da sociedade patriarcal, no qual a mulher é, e deve continuar, responsável pelo ambiente privado e familiar.

Como se não bastasse, o princípio da igualdade previsto na ordem constitucional vigente repele diferenças e discriminações entre homens e mulheres que não são pautadas nos direitos protetivos à maternidade, os quais justificam as naturais diferenças entre os sexos.

O interessante dessa discussão é que apesar de a Lei nº 13.467/2017 ter revogado expressamente o artigo 384, não tratou do artigo 386 da CLT, que concede às trabalhadoras o direito ao revezamento quinzenal do descanso dominical, na hipótese de trabalho aos domingos.

Assim, a questão volta à baila.

No dia 25 de fevereiro próximo passado, foi publicado o acórdão do RR-459-34.2018.5.12.0059, da lavra da ministra Delaíde Alves Miranda Arantes, que por unanimidade, condenou a reclamada ao pagamento dos domingos quinzenais trabalhados em dobro, durante o período imprescrito, para as empregadas mulheres:

"I - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ATIVIDADES DO COMÉRCIO EM GERAL. PROTEÇÃO AO TRABALHO DA MULHER. TRABALHO AOS DOMINGOS. ARTIGO 386 DA CLT. LEI Nº 10.101/2000. Diante da possível violação do art. 386 da CLT, o provimento do agravo de instrumento é medida que se impõe. Agravo de instrumento conhecido e provido.

II - RECURSO DE REVISTA. ATIVIDADES DO COMÉRCIO EM GERAL. PROTEÇÃO AO TRABALHO DA MULHER. TRABALHO AOS DOMINGOS. ARTIGO 386 DA CLT. LEI Nº 10.101/2000. Pesquisas de usos do tempo mostram uma distribuição bastante desigual do tempo entre homens e mulheres na vida cotidiana. Os homens continuam se dedicando ao trabalho produtivo de maneira praticamente integral, enquanto mulheres se esforçam para articulá-lo com o trabalho reprodutivo, assumindo todas as tarefas de antecipação, organização concreta e de coordenação entre diferentes tempos e lugares. A persistência das desigualdades de gênero em âmbito laboral se explica, em grande medida, pela sobrecarga de trabalho reprodutivo a que as mulheres estão submetidas. O alcance da igualdade material não prescinde de tratamento legal que considere as desigualdades de gênero, raça e classe, de forma a assegurar a redução das desigualdades estruturais da sociedade capitalista e patriarcal. Medidas protetivas que levem em consideração especificidades de gênero não consistem em desestímulo à contratação, uma vez que são provisórias e que devem ser acompanhadas de outras políticas públicas que equilibrem o seu impacto. O Tribunal Superior do Trabalho tem decidido que as normas de proteção ao trabalho da mulher foram recepcionadas pelo texto constitucional, não havendo antinomia com o disposto no inciso I do art. 5º da Constituição Federal, no qual está expresso que 'homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações', porquanto o trabalho da mulher merece tratamento especial considerando suas condições específicas, levando-se em conta aspectos históricos, biológicos e sociais. O Pleno desta Corte, em caso análogo, no julgamento do incidente de inconstitucionalidade resolvido no processo RR-1540-2005-046-12-00.5, decidiu pela recepção do art. 384 da CLT (antes de sua revogação pela Lei 13.467/17) pela atual ordem constitucional. O julgado foi assim ementado: (...) O legislador ao inserir o art. 384 da CLT no capítulo de proteção ao trabalho da mulher demonstra que a aplicação do referido artigo deve-se limitar à mulher por conta da sua peculiar condição biossocial, entendimento mantido pelo TST ao afastar a inconstitucionalidade do referido dispositivo. Dessa forma, por analogia, entende-se que o art. 386 da CLT também foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Isto porque, ainda que a Constituição Federal de 1988 vede a discriminação em razão de sexo, nos termos do disposto no inciso I do artigo 5º, recepcionou a norma inserta no art. 386 da CLT, por tratar de regramento especial, justamente para assegurar a integridade física e moral, em condições de igualdade entre homens e mulheres. Saliento que, além de ter sido recepcionada pela Constituição, o art. 386 da CLT não foi revogado pela Lei nº 13.467/2017, a qual foi criada com o propósito de 'adequar a legislação às novas relações de trabalho'. Ressalta-se que as normas jurídicas que regulam as folgas semanais são imperativas, por tratarem de critérios de preservação da saúde pública no ambiente de trabalho. Assim, o art. 386 prevê que, havendo trabalho aos domingos, será organizada escala de revezamento quinzenal que favoreça o repouso dominical. Ou seja, a empregada mulher que trabalhe num domingo, deverá obrigatoriamente folgar no domingo subsequente, independentemente de ter usufruído de folga semanal em outro dia. Quanto a alegação de que o trabalho nos dias de domingo para os comerciários está disciplinado na norma inserta no art. 6º da Lei nº 11.603/2007, em primeiro lugar, é de se destacar que na Lei nº 11.603/2007 não há dispositivo prevendo a revogação do art. 386 da CLT. E mais, a regra inserta no art. 386 da CLT é de natureza especial e tem por fim disciplinar o trabalho da mulher aos domingos, diante do que não pode ser considerada tacitamente revogada, conforme se extrai do §2º do art.2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, na qual está disposto que 'A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior'. Por fim, o trabalho realizado em dia destinado ao descanso dominical, em infração à regra prevista no art. 386 da CLT, acarreta ao infrator a obrigação de remunerar o trabalho, na forma de hora extras, com adicional de 100%, e não apenas uma penalidade de ordem administrativa. Recurso de revista conhecido e provido" (RR-459-34.2018.5.12.0059, 8ª Turma, relatora ministra Delaíde Alves Miranda Arantes, DEJT 25/2/2022).

Diante da recente decisão, cuja ementa foi acima transcrita, convidamos os(as) leitores(as) à seguinte reflexão: o fato de as mulheres cumprirem dupla jornada de trabalho, executando atividades remuneradas e concomitantemente, assumindo (quase) integralmente as atividades no âmbito da vida privada, justificam o gozo de mais folgas no dia de domingo do que os homens?

Com o devido respeito aos entendimentos contrários, entendemos que não.

Assim como o artigo 384, o artigo 386 da CLT foi sancionado em 1943 e teve como fundamento diferenças de ordem biológica, mas também diferenças de "ordem social" e "moral" que justificaram a proteção das mulheres.

Tanto é que o trabalho noturno (artigo 379), insalubre e perigoso (artigo 387) era vedado à mulher; o trabalho em jornada extraordinária dependia de autorização de atestado médico oficial (artigo 375); e, a rescisão do contrato de trabalho poderia ser pleiteada pelo marido ou pai quando acarretasse "ameaça aos vínculos da família" (artigo 446).

Deste modo, podemos concluir que, àquela época, as proteções previstas na legislação trabalhista destinadas às mulheres, não tinham como objetivo compensá-la pela dupla jornada, mas controlar seu acesso ao mercado de trabalho, já que sua obrigação principal era cuidar da casa e da família e não trabalhar fora ou ter uma carreira.

Mas não é só.

Em que medida, o descanso dominical quinzenal colabora para evitar a dupla jornada?

A nosso ver, não colabora, ao contrário, atrapalha.

Primeiro porque o direito ao descanso dominical quinzenal não contribui para uma divisão justa e equilibrada na distribuição de tarefas do cotidiano. Segundo porque com a evolução científica, tecnológica e social, as regras relativas ao trabalho da mulher que restringem os horários, dias e locais de trabalho, diminuem as oportunidades de emprego, reforçam o patriarcado e a falsa ideia de que compete às mulheres o papel de protagonista nos cuidados domésticos e de reprodução.

Por fim, é importante dizer que muitos debates ainda devem surgir a respeito da constitucionalidade do artigo 386 da CLT, além dos benefícios ou não de sua aplicação à tão desejada igualdade entre os sexos e à necessária promoção do mercado de trabalho da mulher.

 é advogada, professora da PUC na graduação e pós-graduação e sócia do escritório Abud e Marques Sociedade de Advogadas.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-mar-04/reflexoes-trabalhistas-direito-descanso-dominical-quinzenal-previsto-mulheres