O presidente dissolveu o Congresso. O Congresso, por sua vez, convocou uma sessão extraordinária e aprovou o afastamento do presidente. Uma parlamentar assumiu a presidência e foi “reconhecida” pelo congresso dissolvido. Em apoio à decisão presidencial, a população exige novas eleições legislativas. Tudo isso aconteceu em poucas horas na noite desta segunda-feira (30) no Peru e agora o país tem dois chefes de Estado e um parlamento fechado. Uma crise sem precedentes.

Por Mariana Serafini*

O conflito começou quando o Congresso, liderado pela líder da direita Keiko Fujimori (filha do ex-presidente Fujimori, preso por corrupção e crime de lesa humanidade), tentou nomear a maior parte dos juízes do Tribunal Constitucional, a Suprema Corte do país. Com isso, a oposição – que domina o poder legislativo – teria também influência no judiciário. Segundo a Constituição peruana, esta não é necessariamente uma atribuição do parlamento.

Para impedir a decisão, o presidente Martín Vizcarra se apoiou em dois artigos da Constituição e decidiu por dissolver o Congresso e convocar novas eleições legislativas marcadas para janeiro. Entretanto, neste meio tempo os parlamentares opositores convocaram uma sessão de emergência, da qual participaram 86 dos 130 membros da Casa, e aprovaram a “suspensão temporária” por um ano de Vizcarra. Na mesma audiência, designaram para assumir a presidência de forma interina à deputada e segunda-vice-presidenta, Mercedez Araoz.

No Peru o parlamento é unicameral, ou seja, não tem Senado. Então tecnicamente o país tem agora dois presidentes e nenhum Congresso. Após assumir a presidência paralela Araoz disse que pediria ajuda da OEA (Organização dos Estados Americanos) para solucionar o impasse. O organismo internacional, porém, já se pronunciou e afirmou que cabe à Suprema Corte peruana “decidir pela legalidade e legitimidade das decisões institucionais adotadas, bem como das diferenças que possam existir na interpretação da Constituição”.

Logo após o anúncio de Vizcarra, milhares de manifestantes tomaram as ruas das principais cidades do país em apoio à decisão de que sejam realizadas novas eleições legislativas. Líderes políticos também apoiam a decisão presidencial de impedir o Congresso de exercer tanta influência sobre o poder Judiciário.

A ex-candidata à presidência pela Frente Ampla – o campo progressista – Verónika Medonza se pronunciou ainda na noite desta segunda em apoio a Vizcarra, representante do centro. “O congresso burlou a democracia e rasurou suas normas elegendo irregularmente membros do Tribunal Constitucional. É o momento de fechar o Congresso”, disse no Twitter.

Algumas questões são essenciais para entender os motivos que teriam levado parlamentares fujimoristas a ter tanto interesse em controlar o Judiciário. A Suprema Corte pode decidir pela liberdade do ex-presidente Alberto Fujimori, condenado a 25 anos de prisão em 2009. “El Chino”, como é chamado no país, é o primeiro líder eleito democraticamente na América do Sul a ser condenado por abusos de direitos humanos e corrupção. Durante o governo dele, entre 1990 e 2000, existiu um projeto de controle populacional que submeteu mais de 300 mil mulheres indígenas à esterilização forçada.

A deputada Keiko Fujimori, filha do ex-presidente, foi condenada em 2018 por receber dinheiro ilegal do grupo Odebrecht. Chegou a ser presa, mas está em liberdade condicional. O Tribunal Constitucional também pode decidir pela anulação da prisão preventiva dela.

Assim como em outros países da América Latina, no Peru dezenas de parlamentares e governadores receberam verba de campanha de forma ilegal da Odebrecht. A investigação em curso no país poderia ser suspensa pelo Tribunal Constitucional.

Entretanto, os episódios confusos desta segunda-feira são apenas o estopim de uma crise que começou em 2018, quando o presidente eleito, Pedro Pablo Kuczynski renunciou ao cargo e lançou o país num cenário de instabilidade institucional.

Mesmo com a renúncia do presidente, o Peru ainda era um dos poucos países do continente que, em meio à crise econômica, conseguia manter uma economia estável. Contudo, os novos episódios podem abalar também a jovem democracia peruana e lançar o país na onda de retrocessos políticos e econômicos que já atingiu Honduras, Paraguai, Venezuela, Brasil e Argentina na última década. É necessário acompanhar os próximos capítulos.

 *Mariana Serafini é jornalista.

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