O Supremo Tribunal Federal tem reiterada jurisprudência acerca da validade de outras formas de trabalho que senão a de emprego. Uma delas é a questão da competência para processar e julgar as relações de representação comercial e como ela pode influenciar nos contratos de representação comercial.
Breve histórico da subordinação
“A carteira, pelos lançamentos que recebe, configura a história de uma vida. Quem a examina logo verá se o portador é um temperamento aquietado ou versátil; se ama a profissão escolhida ou ainda não encontrou a própria vocação; se andou de fábrica em fábrica, como uma abelha, ou permaneceu no mesmo estabelecimento, subindo a escala profissional. Pode ser um padrão de honra. Pode ser uma advertência.”
Esse é o texto que carregava a extinta carteira de trabalho em formato físico, de autoria de Alexandre Marcondes, a qual prestigiava a profissão [1] escolhida como elemento de expressão da própria personalidade. Um padrão de honra ou, para outros, uma advertência.
Para se ter esse reconhecimento em papel, era necessário se ter a presença de cinco elementos. A saber, a não eventualidade (compreendido a intermitência), onerosidade (não permitindo que seja uma prestação voluntária), pessoalidade (seja prestado o labor sem possibilidade de se substituir), por pessoas naturais e, por quiçá mais importante, a subordinação.
A saber, ao contrário de uma concepção monista do contrato de trabalho, em que todas as relações de trabalho seriam uma relação de emprego, somente aquelas que completassem os cinco requisitos poderiam ser reconhecidas como tal, independente de prévio ajuste escrito (existência de contrato ou não).
No texto do artigo 3º da CLT, a subordinação era compreendida na expressão: “sob a dependência deste”. Durante anos houve a discussão na prestigiada doutrina sobre o que significaria “dependência”, no termo da lei.
A introdução da subordinação pode ser atribuída ao italiano Lodovico Barassi (Nascimento, 2011, p. 654), que a classificou como a mais importante para a configuração do vínculo empregatício.
Neste sentido, “dependência” é completamente diferente de “subordinação”. Um não é sinônimo do outro. Hoje e há tempos, o entendimento hegemônico é de que a subordinação deve ser vista sobre o prisma jurídico. Para Amauri Mascaro Nascimento (2011, p. 654), jurídica é a posição do empregado frente ao empregador, no seu modo de trabalho.
A subordinação é, sem dúvidas, objeto de análise da Justiça do Trabalho [2].
Para além da subordinação: parassubordinação
Agora, o que nos é pertinente neste artigo, e as outras formas de trabalho? Qual a relação da Justiça “do Trabalho” com as outras formas de “trabalho”?
Para além de um trabalho subordinado e de um trabalho autônomo, um terceiro gênero se levanta. Concebido em terras italianas em um contexto de crise econômica [3], o objetivo da época era de garantir o trabalho em condições dignas, aumentando as vagas deste, mesmo que sem a rubrica de emprego, diminuindo formas precárias, a margem e, ao mesmo tempo, conjugar um sistema um sistema de incentivo e amortização empresarial, isto é, um equilíbrio econômico e social entre garantismo e flexibilização, de modo que se evitou uma ruptura completa no tecido social (Nascimento, 2011, p. 81).
Nasce, portanto, uma legislação de parassubordinação para além de subordinação. Era uma estrutura jurídica pautada em management by objectives, mais do que management by regulation(Nascimento, 2011, p. 81), isto é, prioridade aos objetivos, independente da forma.
Nas palavras de Juan Raso Delgue (2006, p. 46), existe um terceiro gênero que rompe com o modelo clássico: “Sigue existiendo una distancia profunda entre el trabajo subordinado y el trabajo autónomo, aunque es un hecho que aumenta el espacio de las zonas grises, en las que es cada vez más difícil distinguir las relaciones contractuales que se pactan en materia de trabajo.”[4]
No Brasil, a tese foi importada. A sua expressão máxima foi a da Lei da Representação Comercial, feita em 1965, com a promulgação pelo General Castello Branco. No texto de Daniel Faraco, dentre os motivos expostos, destaca-se: “meio de, resguardando ao máximo a liberdade das partes, dar maior nitidez aos direitos e deveres recíprocos, com o que muito terá a ganhar a boa condução dos negócios comerciais, em clima de harmonia e cooperação” [5], o que se difere, em muito, da subordinação.
O objetivo era, conferir liberdade e cooperação entre os subordinados e parassubordinados.
Entretanto, desde a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o texto da Constituição preceitua que compete a Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho.
A grande questão é, portanto, compete a Justiça do Trabalho julgar todas as relações de trabalho? Se não, incidem os princípios do direito do trabalho sobre todas as formas de trabalho?
Trabalho fora da Justiça do Trabalho
Em muito tempo, o Tribunal Superior do Trabalho tinha entendimento formado pela competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar as relações de representação comercial.
LIDE DECORRENTE DE CONTRATO DE REPRESENTAÇÃO COMERCIAL CELEBRADO POR PESSOA FÍSICA. COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Desde a Emenda Constitucional 45/2004, a competência desta Justiça Especializada foi significativamente ampliada para albergar todas as relações de trabalho entre pessoas físicas, e não mais apenas as lides decorrentes do vínculo de emprego. Na hipótese dos autos, o autor, na qualidade de representante comercial autônomo, pleiteia parcelas do contrato civil estabelecido com a ré. Não se trata, assim, de lide civil entre pessoas jurídicas, mas de discussão em torno do trabalho prestado por pessoa física, a atrair a competência da Justiça do Trabalho, nos exatos termos do artigo 114, I, da Constituição Federal. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido” (RR – 1423-08.2010.5.15.0129, 7ª Turma, Redator Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 05/07/2019)
Entretanto, na mesma linha de atuais questões sobre a “pejotização” e o “trabalho terceirizado”, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo pela competência da Justiça Comum para o julgamento das outras formas de trabalho que senão a do emprego.
No caso da representação comercial, temos o Tema de Repercussão Geral [6] nº 550, em que o ministro Marco Aurélio, embora relator, foi voto vencido. A turma, com acórdão do ministro Roberto Barroso decidiu que:
[…]
2. As atividades de representação comercial autônoma configuram contrato típico de natureza comercial, disciplinado pela Lei nº 4.886/65, a qual prevê (i) o exercício da representação por pessoa jurídica ou pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis e (ii) a competência da Justiça comum para o julgamento das controvérsias que surgirem entre representante e representado.
3. Na atividade de representação comercial autônoma, inexiste entre as partes vínculo de emprego ou relação de trabalho, mas relação comercial regida por legislação especial (Lei n° 4.886/65). Por conseguinte, a situação não foi afetada pelas alterações introduzidas pela EC n° 45/2004, que versa sobre hipótese distinta ao tratar da relação de trabalho no art. 114 da Constituição.
Ao contrário do que entendia a Justiça do Trabalho, é à Justiça Comum que compete o processar e julgar as relações de parassubordinação.
O tribunal consignou que: “O serviço prestado pelo representante comercial não apresenta o elemento da subordinação, já que não se submete a ordens, hierarquia, horário ou forma de realização do trabalho”.
Além de pensar em um suposto esvaziamento de competência da Justiça do Trabalho em virtude de sua centralidade forçada aos contratos de emprego, e não no gênero trabalho, permite-se inquirir se seus princípios ainda se convalescem face à Justiça Comum. Isso é, se ainda se aplicam os princípios do direito do trabalho em contraste ao direito civil.
Ao que parece, para os contratos de representação comercial (e não só, abrangendo aqueles que são extraídos da justiça do trabalho) os princípios operacionais do direito civil vêm sendo mais aceito pelos tribunais.
Inclusive, nas hipóteses de rescisão unilateral de contrato por justo motivo (outrora por “justa causa”, no direito do trabalho).
Por exemplo, em julgado do TJ-SP em que houve a discussão de justo motivo, nos termos do artigo 35 da Lei nº 4.886/65, o Tribunal entendeu a concorrência, se não prevista e vedada em contrato, não é justo motivo para rescisão (TJ-SP. Apelação Cível nº 1003744-31.2021.8.26.0428. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. desembargador relator Fortes Barbosa. Data do julgamento: 06/11/2024), ao contrário do que existe para o contrato de trabalho, por expressa previsão legal (art. 482, alínea “c” da CLT).
Conclusão
Por fim, pode-se concluir que o direito do trabalho caminha para além de ser um direito exclusivamente do emprego e que litiga unicamente sob o pálio da Justiça do Trabalho. Independentemente do palco em que se julga e da nomenclatura que se atribua, o trabalho continua sendo o motor de avanço econômico e social.
Acerca do trabalho parassubordinado, a concepção do trabalho fora da Justiça do Trabalho demanda um olhar atento do operador do direito para que se mantenha conservada a base de sustentação do trabalho decente o do desenvolvimento sustentável. Inobstante estarem fora do chapéu protetor da Justiça Social, são merecedoras da proteção imanente ao trabalho humano.
Na mesma linha, muito embora sejam julgadas longe da Justiça especializada, as formas de trabalho que o processar e julgar estão sendo atribuídas à Justiça Comum, como ocorre nos casos de “pejotização” [7], também merecem o especial olhar e atento dos operadores do direito, para que os fundamentos do trabalho não se percam e se confundam em meras operações civilistas. É imperioso lembrar que a clara divisão romana fazia a separação da “locatio conductio” no seu gênero: locatio conductio rei, o que mmais nos aproxima ao aluguel (ou com a repugnante escravidão); locatio operarum, que é o trabalho, o serviço (independente da nomenclatura a que se atribua) e o locatio operis, que é a própria obra (PINTO E SILVA, 2004, p. 349).
Neste sentido, o estudo da competência e da aplicação de normas próprias para as relações regidas de representação comercial demanda cuidado para que não se sobressaiam situações de injustiças provocadas pelos vícios de consentimento, impedindo a cooperação e harmonia planejada. Em outras palavras, é necessário que a representação comercial seja, de fato, representação comercial. É preciso que o contrato seja realidade.
Referências
DELGUE, Juan Raso. La contratación atípica del trabajo. 2. Ed. Montevideo: Amálio M. Fernández, 2006
EDUARDO, Álick Henrique Souza; ÁGUILA, Iara Marthos. Para além da Subordinação: Uma análise do homem, trabalho e da norma jurídica em um novo contexto socioeconômico do trabalho parassubordinado. Revista da Faculdade de Direito de Franca, v. 17, nº 2, 2023. Disponível em: **https://revista.direitofranca.br/index.php/refdf/article/view/1320/853**. Acesso em 25/11/2024
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho – 11. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do Direito do Trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011
PINTO E SILVA, Otávio. O direito romano e as origens do trabalho autônomo. Revista da Faculdade de Direito – Universidade de São Paulo, v. 99, p. 349–54. 2004. Disponível em: **https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/download/67629/70239/89054**. Acesso em: 27/11/2024.
[1] Ao longo da história, o trabalho recebeu diversas concepções e olhares, como castigo ou como predestinação a salvação. Deriva da obrigação de não onerar os outros com cansaço e o sofrimento do trabalho, remontando ao livro de Gênesis, 3:17-19, em que Deus dá o castigo do trabalho: “No suor do teu rosto comerás o teu pão”, ou seja, dado a conquista do que comer a custo do trabalho, quem não assim o faz não deve onerar quem o faz. Num texto famoso de S. Paulo, o preceito “Quem não quer trabalhar não coma” (2ª Tessalonicenses, 3:10). Era nesse mesmo sentido que S. Agostinho e S. Tomás de Aquino prescreviam o trabalho como preceito religioso. Cabe lembrar que a ideia da antiga exploração era legitimada pela vontade divina. Dizia Santo Agostinho que a justa ação do servo era a de conformar-se à condição servil, porque assim Deus o quis. Para ver mais: EDUARDO, Álick Henrique Souza; ÁGUILA, Iara Marthos. Para além da Subordinação: Uma análise do homem, trabalho e da norma jurídica em um novo contexto socioeconômico do trabalho parassubordinado. Revista da Faculdade de Direito de Franca, v. 17, nº 2, 2023. Disponível em: **https://revista.direitofranca.br/index.php/refdf/article/view/1320/853**. Acesso em 25/11/2024.
[2] Nada obstante, importante observar e válido frisar a crítica feita por Carlos Henrique Bezerra Leite ao afirmar que: “se o Direito do Trabalho continuar se preocupando apenas com o dogma da subordinação, há uma tendência no sentido de que diminuirá drasticamente o seu campo de atuação, com o risco acentuado de vir a desaparecer no cenário das ciências jurídicas” (2019, p. 254). Para muitos existe a crítica que não existe mais Justiça “do Trabalho”, mas sim, com o esvaziamento político de sua competência, uma Justiça “do Emprego”.
[3] A chamada Lei Biagi em 2003 teve o sentido de regulamentar aquilo que já vinha ocorrendo. A Itália apresentava, no começo dos anos 2000, índice de desemprego de 53,5% (NASCIMENTO, 2011, p. 80), uma situação desconfortável por qualquer prisma que se observasse, seja econômico ou social.
[4] Em uma tradução livre: “Continua a haver uma grande distância entre o trabalho subordinado e o trabalho autônomo, embora seja um fato que aumenta o espaço das zonas cinzentas, em que é cada vez mais difícil distinguir as relações contratuais que se pactuam em termos de trabalho.”
[5] Projeto nº 3.350/65 — Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0yxu1x8kj7ld7u0e1trfhq0sx9551620.node0?codteor=1194993&filename=Dossie+-PL+3350/1965. Acesso em 25/11/2024.
[6] Nada obstante a incontroversa possibilidade do julgamento pelos Temas, é importante pontuar uma crítica sobre a importação dos precedentes introduzidos pelo CPC de 2015. A eleição da Repercussão Geral em um processo em que se faz o controle difuso de constitucionalidade, subjetivo e concreto por meio da eleição de um leading case, com efeito erga omnes, é questionável pela rasa participação de terceiros afetos pelo tema e pela possível má condução processual (com a escolha individual), ao contrário do que ocorre, em via de regra, nos processos de controle concentrado, objetivos e abstratos em que a participação de terceiros como amici curiae e outras organizações (associações e OSCIP’s) são incentivadas. Inclusive, a pretensão da tutela coletiva sempre foi de beneficiar a coletividade e não de prejudica-la, como ocorre nos julgamentos em processos coletivos, com a coisa julgada secundum eventus probationem, e não pro et contra, como ocorre nos processos individuais e que, na repercussão geral, se mal escolhido o leading case, pode-se fazer.
[7] RCL 59.795/MG (Rel. Min. Alexandre de Moraes, de 24/05/2023), Rcl 39.351 AgR (Rel. Min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 11/5/2020) e da Rcl 47.843 AgR (Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Red. p/ Acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, DJe de 7/4/2022)
- Álick Henrique Souza Eduardo é advogado no escritório Pádua Faria Sociedade de Advogados, mestrando em Direito com Linha de Pesquisa em Tutela e Efetividade dos Direitos da Cidadania pela Unesp Franca, pós-graduado em Direito Público Contemporâneo pela Faculdade de São Vicente e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.
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