PRÁTICA TRABALHISTA

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Após a enorme repercussão do resgate de dezenas de trabalhadores que se encontravam em situação análoga à escravidão nas vinícolas brasileiras, em Bento Gonçalves, e que desempenhavam as suas atividades por intermédio de serviços terceirizados, outros casos semelhantes passaram a ser noticiados pela imprensa.

Mais recentemente, aliás, 32 trabalhadores foram resgatados pelo MPT em condições análogas à escravidão, em uma fazenda no interior de São Paulo, envolvendo uma fornecedora do açúcar Caravelas [1] (leia aqui o outro lado da empresa). Já em Uruguaiana, a 630 quilômetros de Porto Alegre, ao menos 56 trabalhadores (incluindo menores de idade) foram resgatados em plantação de arroz, tendo em vista se encontrarem em condições precárias — sem comida, água, banheiro e local de descanso adequado [2].

Noutro giro, a empresa M. Officer foi condenada ao pagamento de uma indenização de R$ 100 mil, por danos extrapatrimoniais, em decorrência da jornada exaustiva e condições degradantes do ambiente laboral. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve a condenação arbitrada na Vara de origem, e que foi referenda pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região. O processo tramita desde o ano de 2014.

Aliás, quando do julgamento do recurso, a Corte Regional concluiu:

"Não nos resta dúvida que a primeira reclamada, M5 Indústria e Comércio Ltda., ocupou-se em ampliar os lucros de seu negócio, valendo-se para tanto da exploração de mão de obra de pessoas que, destituídas da dignidade devida a todo ser humano, se sujeitavam a se ativarem por horas a fio, em troca de comida e abrigo [...] De fato, a primeira reclamada não saía a campo para contratar os bolivianos encontrados no local da diligência, pois se valia de outra empresa, qual seja, Empório Uffizi, que se ocupava de intermediar as duas pontas da relação jurídica. [...] A Empório Uffizi exercia um papel importante nessa ligação, pois visava impedir o acesso dos trabalhadores da oficina ao real beneficiário da prestação de seus serviços, qual seja, M5 Indústria e Comércio Ltda" [3].

Por certo, esta temática, de suma importância, vem sendo debatida corriqueiramente, tanto que foi indicada novamente por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista Consultor Jurídico (ConJur) [4], razão pela qual agradecemos o contato.

Com efeito, ressurge neste atual contexto a discussão a respeito da precarização da mão de obra por intermédio do trabalho terceirizado que, hodiernamente, é plenamente admitida pelo Supremo Tribunal Federal.

Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a terceirização se reflete em um aumento da precarização das condições de trabalho [5], sendo essa a posição de parcela da doutrina aqui defendida por Amanda Eiras Testi [6]:

"Os simpatizantes à terceirização defendem o posicionamento de que se trata de uma técnica moderna, a qual preserva direitos trabalhistas, gera empregos, não precariza o trabalho e permite a concentração da empresa na atividade principal, trazendo uma dupla garantia aos trabalhadores. Mas a realidade é antagônica a esses fundamentos.O atual modelo de terceirização é idêntico à intermediação de mão de obra existente no período da Revolução Industrial, período este em que os trabalhadores eram considerados como meras mercadorias, havia precariedade nas condições de trabalho e a saúde e segurança do trabalho eram inexistentes, caindo por terra a alegação de que tal instituto é uma modernização necessária(...). A argumentação de que a terceirização gera empregos e não precariza o trabalho é frágil, haja vista que ela gera subempregos, em condições totalmente atentatórias à dignidade do trabalhador. Não basta que haja a instituição de novos empregos, mas que estes sejam dignos, propiciem condições dignas de trabalho e não insiram o trabalhador em condição de semiescravidão" (SOUTO MAIOR, 2015).

De mais a mais, os dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) indicam que o número de denúncias envolvendo o trabalho análogo à escravidão é o maior desde o ano de 2012 [7], sendo que, somente neste no ano de 2023, foram resgatadas 523 vítimas de acordo com as informações do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) [8].

Ainda, uma pesquisa divulgada no ano de 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que os empregados eram impedidos de sair de seu trabalho, em decorrência de dívidas com o empregador. Os débitos em questão estavam relacionados com alimentação, transporte, instrumentos de trabalho, aluguel, entre outros [9].

Entrementes, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) [10] veda e combate a prática de trabalho forçado, a servidão por dívida e as formas contemporâneas de escravidão, em observância aos princípios e direitos fundamentais do ser humano. Logo, impedir o direito de ir e vir do trabalhador, submetendo-o a condições precárias que afrontem a dignidade da pessoa humana, inclusive mediante vigilância ostensiva, sob ameaça, física ou psicológica, são formas de trabalho forçado e análogo ao de escravo.

Sob esta perspectiva, o artigo 1º da Portaria nº 1.293, de 28 de dezembro de 2017, do Ministério do Trabalho e Previdência [11], conceitua como condição análoga à de escravo aquela que o trabalhador for sujeitado, de forma isolada ou conjuntamente: I - Trabalho forçado; II - Jornada exaustiva; III - Condição degradante de trabalho; IV - Restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; V - Retenção no local de trabalho em razão de: a) Cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; b) Manutenção de vigilância ostensiva; c) Apoderamento de documentos ou objetos pessoais.

É preciso lembrar que todo cidadão tem direito a uma vida digna, nela, incluindo, o trabalho em um meio ambiente laboral saudável. É dever de toda a sociedade combater e contribuir para a erradicação de condutas que contribuam para o trabalho em condições nocivas, principalmente, nos moldes da escravidão. É fundamental não só a punição aos infratores, mas também a criação de mecanismos e políticas que possibilitem a transparência e a informação, possibilitando, assim, que a população possa ter uma mudança de cultura, contribuindo para um desenvolvimento sustentável e uma nova educação.

Por isso que, tal como já foi escrito e publicado por estes articulistas subscritores desta coluna no artigo intitulado Os casos de trabalho análogo à escravidão em vinícolas brasileiras [12], é primordial a adoção pelas empresas das modernas políticas de compliance trabalhista [13] e de boas práticas de ESG [14]. Afinal, no atual estágio das relações sociais, eis o grande desafio do Direito do Trabalho apto a servir de efetivo instrumento à concretização da responsabilidade social empresarial.

E, tal como dito no início, finaliza-se este artigo ao menos com uma boa notícia: diante do impacto negativo das publicações envolvendo as vinícolas brasileiras, as cooperativas de vinho do Rio Grande do Sul propuseram uma reestruturação e modificação na contratação de mão de obra terceirizada, e, por conseguinte, na forma de trabalho desempenhada em toda a cadeia produtiva [15].

[2] Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2023/03/11/sem-aguam-comida-e-banheiro-56-trabalhadores-sao-resgatadas-em-plantacao-de-arroz-no-rs. Acesso em 14.03.2023.

[3] Disponível em http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/resumoForm.do?consulta=1&numeroInt=98034&anoInt=2021. Acesso em 14.03.2023.

[4] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[5] Disponível em https://www.dieese.org.br/notatecnica/2017/notaTec172Terceirizacao.pdf. Acesso em 14.03.2023.

[6] OTRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO DOS BOLIVIANOS NO BRASIL: UMA BREVE ANÁLISE ACERCA A AMPLIAÇÃO DA TERCEIRIZAÇÃO COMO FONTE DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO APÓS A LEI 13.429/2017. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 65, n. 99, p. 165-190, jan./jun. 2019.

[7] Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/03/07/brasil-denuncias-de-trabalho-analogo-ao-escravo-mais-que-dobram-em-11-anos.htm. Acesso em 14.03.2023.

[8] Disponível em https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/03/somente-em-2023-523-vitimas-de-trabalho-analogo-a-escravidao-foram-resgatadas. Acesso em 14.03.2023.

[9] Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/divida-com-empregador-impede-15-milhao-de-trabalhadores-de-sair-do-emprego-diz-ibge.ghtml. Acesso em 14.03.2023.

[10] Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/WCMS_393058/lang--pt/index.htm. Acesso em 14.03.2023.

[11] Disponível em https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/1497798/do1-2017-12-29-portaria-n-1-293-de-28-de-dezembro-de-2017-1497794. Acesso em 14.03.2023.

[12] Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mar-02/pratica-trabalhista-casos-trabalho-analogo-escravidao-vinicolas-brasileiras. Acesso em 14.03.2023.

[13] Para melhor conhecimento e aprofundamento da temática, indicamos a leitura da obra "LGPD e Compliance Trabalhista (Editora Mizuno)", da qual o professor Ricardo Calcini é um dos organizadores. Disponível em https://www.editoramizuno.com.br/direito/trabalho-e-processo-do-trabalho.html. Acesso em 14.03.2023.

[14] Para melhor conhecimento e aprofundamento da temática, indicamos a leitura da obra ESG: A Referência da Responsabilidade Social Empresarial (Editora Mizuno), da qual o professor Ricardo Calcini é um dos organizadores. Disponível em: https://www.editoramizuno.com.br/livro-sobre-esg-e-responsabilidade-social-empresarial.html. Acesso em 14.03.2023.

[15] Disponível em https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/03/06/cooperativas-de-vinho-propoem-reestruturacao-na-relacao-com-terceirizadas-apos-caso-de-trabalho-escravo-no-rs.ghtml. Acesso em 14.03.2023.



 é professor sócio consultor de Chiode e Minicucci Advogados | Littler Global. Parecerista e advogado na Área Empresarial Trabalhista Estratégica. Atuação especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Docente da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Ceilo Laboral.

 é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2023-mar-16/pratica-trabalhista-terceirizacao-lista-suja-combate-trabalho-analogo-escravidao