O sofrível crescimento econômico durante os quatro anos de Jair Bolsonaro parecem não ter abalado os adeptos da religião dos mercados livres.

 Ricardo L. C. Amorim

Oséculo XXI, desde seu início, revelou-se agitado no Brasil. Não apenas políticas e desempenhos econômicos foram discrepantes, mas um velho ator adormecido foi, recentemente, despertado: a extrema-direita. Com ele, o ambiente político, como nos anos 1960, ganhou ares de enfrentamento “nós contra eles” e o conservadorismo agressivo, típico de sociedades profundamente desiguais, aflorou em atos violentos e insensatez. Durante o golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, o objetivo da grande mídia e de notáveis empresários e políticos parecia ser apenas apear a social-democracia do poder e retomar as tradições seculares de domínio de uma certa elite do país. A surpresa para muitos, no entanto, se revelou logo depois, com a combinação de forças entre a extrema-direita, que se organizava e crescia na internet desde 2006, e parte do empresariado, ambos com o fito de construir uma alternativa conservadora radical para o futuro. Nesse lado do espectro político, a candidatura presidencial do deputado Jair Bolsonaro, até ali, pouco conhecido, adequou-se ao projeto.

Após unir parte dos interesses capitalistas urbanos, o agronegócio de exportação, a extrema-direita e leituras neoliberais da realidade, o eleito presidente Bolsonaro, apoiado em ampla bancada no Legislativo, aprofundou as reformas econômicas iniciadas no governo Temer. Por exemplo, intensificou mudanças nas leis de proteção ao trabalhador, engessou o custeio do governo federal, reduziu investimentos públicos e de estatais, alterou o funcionamento de órgãos de fiscalização e abrandou a regulação sobre algumas atividades econômicas. Os resultados das reformas, porém, ficaram longe das promessas: a renda per capita continuou, em 2022, abaixo da alcançada em 2014, a indústria de transformação seguiu diminuindo seu peso no PIB, as exportações intensificaram a perda de densidade tecnológica, o chamado “teto de gastos” foi estourado todos os anos, o desemprego permaneceu alto e as vagas geradas foram de baixa remuneração. Além disso, 33,1 milhões de brasileiros passaram recentemente a sofrer com insegurança alimentar, após o Brasil ter deixado, em 2014, o Mapa da Fome da ONU.[1]

Apesar de resultados econômicos claramente ruins, os sempre tão falantes neoliberais, marcadamente os economistas do mercado financeiro, se mostraram estranhamente silenciosos na crítica aos quatro anos de governo Bolsonaro. Por quê? A resposta é que os neoliberais oscilaram entre a perplexidade e a cumplicidade durante todo esse tempo. A perplexidade surgia da incapacidade ‒ e desinteresse ‒ de sua teoria compreender a vertiginosa mudança nas preferências dos cidadãos que escolheram dar poder à extrema-direita. Já a cumplicidade era motivada pelas promessas de laissez faire feitas desde a campanha eleitoral.

A perplexidade, por exemplo, se originava da abstração que os neoliberais realizam da vida social, ao aviltar a existência humana em simples busca por bem-estar material em mercados idealizados e místicos, desconhecendo o homem, suas crenças e afetos. De acordo com essa abordagem, se cada humano buscasse, individual e racionalmente, apenas bem-estar material ao interagir em sociedade, seria esperado que jamais agisse contra seus interesses e reagisse negativamente aos primeiros sinais de perda de conforto. Portanto, sob instituições estáveis, pequenas variações no ambiente implicariam em novas escolhas para cada indivíduo, refletindo suas preferências. De outro modo, reduções no bem-estar material não seriam toleradas por agentes racionais sem alterar de imediato seu comportamento.

Assim, em primeiro lugar, salta aos olhos a inconsistência da idealização neoliberal e a recente realidade social brasileira. Estudos econômicos publicados em periódicos científicos e relatórios de entidades nacionais e estrangeiras apontaram que a economia do Brasil, até 2022, não havia recuperado o nível de renda real per capita alcançado em 2014.[2] Isto é, oito anos após a recessão iniciada em 2015, o país ainda não voltou a crescer, configurando o mais longo período de crise econômica desde a Proclamação da República. O desempenho ruim da economia e a deterioração do bem-estar material dos cidadãos, entretanto, longe de alterar o comportamento da maioria, agudizou, em determinados grupos, o apoio ao aprofundamento das políticas dos governos Temer e Bolsonaro.

Em segundo lugar, os trágicos resultados da pandemia de Covid-19, mesmo após a divulgação dos equívocos do governo federal e os números revelarem a dimensão do drama, não mudaram o apoio dado ao Poder Executivo. Ao contrário. Parte significativa da população gritou pela reeleição do candidato da situação em 2022. Em resumo, é possível afirmar que quase metade dos brasileiros continuou a defender bandeiras que contrariavam seus interesses materiais (e de afeto) imediatos, negando as teses neoliberais.

Em terceiro lugar, chamam a atenção as mudanças bruscas nas preferências de parcela dos cidadãos. Por exemplo, segundo pesquisas CNI/Ibope, o governo da presidenta Dilma Rousseff, em março de 2013, era avaliado como ótimo e bom por 63% da população. Mas em julho de 2014, essa avaliação caiu para menos da metade (31%). O contrário aconteceu entre os que consideravam o governo Rousseff ruim ou péssimo, passando de 7% para 31% no mesmo período. O quadro se tornou ainda mais crítico, quando, em dezembro de 2014, a administração era avaliada como ótimo e bom por 40% da população e, em março de 2015, a mesma taxa caíra para 7%. No outro extremo das preferências, os que avaliavam o governo como ruim ou péssimo representavam 27% e passaram a 64% nos mesmos três meses de intervalo. Variações tão bruscas, todavia, não poderiam ocorrer, segundo a teoria neoliberal, exceto em caso de fortes surpresas. Na ausência de um choque econômico, por exemplo, mudanças nas escolhas deveriam ser incrementais, guiadas pela racionalidade dos agentes econômicos em interação social. A abrupta alteração de preferências, nos dois períodos, não se sustentou, naturalmente, apenas na desaceleração do crescimento ou receosas expectativas. Havia algo mais.

Em quarto lugar, o espanto dos crentes do livre mercado se ampliou também sob o aspecto geográfico. As decisões dos indivíduos, nas diferentes partes do território brasileiro, se guiadas pela razão em favor do auto interesse, deveriam produzir preferências e rejeições semelhantes, uma vez que todos estão submetidos à mesma política econômica. Os resultados das eleições presidenciais de 2018 e de 2022, no entanto, negaram o valor explicativo universal da abstração neoliberal. Nos dois pleitos, os estados do Centro-Sul deram vitória ao candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, e os estados do Nordeste constituíram maioria em favor, primeiro, do candidato apoiado por Lula e, depois, para o próprio Lula. Não foram preferências pulverizadas pelas variadas individualidades dentro do território nacional, mas, sim, escolhas bem delimitadas do ponto de vista regional, indicando que o fenômeno é complexo e não responde aos mecanicismos da teoria econômica neoliberal.

Sob esses fatos, a perplexidade entre os neoliberais era esperada. Mas a estupefação não causou o silêncio obsequioso dos apóstolos do livre mercado durante o governo Bolsonaro. Segundo os princípios defendidos pelos próprios neoliberais para explicar os comportamentos humanos, o motivo mais importante parece se situar no auto interesse, isto é, na cumplicidade.

Nesse caso a conduta não surpreendeu. A história de cumplicidade do neoliberalismo com a extrema-direita, na América Latina, é antiga. Por exemplo, a crença no livre mercado e seu valor para os novos negócios levaram baluartes do neoliberalismo, como Friedrich Hayek, a defender o violento regime militar chileno (1973-1990) que prometia “reduzir a presença” do Estado na economia e controlar as vozes dissonantes. O silêncio contra a brutalidade do regime foi ensurdecedor. Mas não havia contradição. Para Hayek, uma ditadura com princípios econômicos liberais poderia realizar reformas capazes de “libertar” o indivíduo e as empresas, aspirando a benefícios no longo prazo. O que os neoliberais propunham, então, era um significado específico para o conceito de liberdade, associando-o ao laissez faire econômico, nada mais.[3] Havia, portanto, condescendência e colaboração.

No Brasil, diferentemente, no fim dos anos 1980, os neoliberais se mostraram críticos muito falantes, repercutindo temas pautados pela grande mídia. Um dos assuntos preferidos era a Constituição Federal de 1988, contra a qual, desde a promulgação, afirmavam conter direitos individuais e coletivos que não cabiam no orçamento do Estado. Para os crentes da religião do mercado livre, era preciso alterar a Carta Magna para que houvesse maior liberdade de ação econômica, desregulação de atividades, menos fiscalização estatal, menor proteção aos trabalhadores e contenção na distribuição secundária da renda realizada pelo Estado.[4] A eloquência das críticas pretendia influenciar o novo pacto social que nascia a partir da Constituição, reduzindo o risco do Estado voltar a conduzir o desenvolvimento econômico e “atrapalhar” o curto prazo dos negócios financeiros e os lucros cotidianos.

Por isso, a vitória de algo próximo da social-democracia, na eleição presidencial de 2002, foi levada muito a sério pelos conservadores e neoliberais.[5] Apesar da repetição diuturna do credo mercadista nos grandes meios de comunicação do país e da reverberação da opinião “técnica” de economistas do mercado financeiro contra o governo federal, a alta popularidade do presidente Lula indicava perda de hegemonia discursiva dos interesses da elite do poder, marcadamente do capital especulativo. Mesmo não sofrendo com lucros menores (pelo contrário), os “donos do Brasil” se deram conta de que seu domínio ideológico e sua liberdade econômica para fazer o que quiser estavam em risco no longo prazo e era preciso reagir.

A reação veio por meio do reenquadramento do debate no país. Os grupos sociais elitizados constataram que temas como direitos humanos, democracia e desigualdade social avançavam,[6] apesar da resistência bem remunerada, oferecida pelos ricos e poderosos. Em paralelo, a extrema-direita brasileira se multiplicava em fóruns nas redes digitais, unindo pautas morais, religiosas, totalitárias, misóginas e monarquistas, logrando convergir, em aparente uníssono, conteúdos que afastavam do debate questões sobre os privilégios detidos por uma minoria identificável da população. Era a solução esperada. Ali, a elite brasileira se aliou à extrema-direita, financiando-a para que soltasse suas fantasias. Com isso, os donos do capital e do poder alcançaram seu objetivo, realinhando o debate nacional em direção às distantes questões da pauta moral e à falsa oposição entre liberdade e igualdade, tornando-se ‒ assim como seus privilégios ‒ quase invisíveis às controvérsias. Destarte, a maior permissividade econômica poderia ser reclamada sem a intervenção democrática e reivindicatória da patuleia.

Nessa situação, o apoio generalizado dos neoliberais e do capital à eleição e (um pouco menor) ao governo Bolsonaro não foi uma surpresa, principalmente após a escolha de Paulo Guedes para ministro da Economia. O “Posto Ipiranga”, profissional do mercado financeiro conhecido entre pares, defendeu, em diversas ocasiões, diretrizes neoliberais para as políticas econômicas do governo federal, inclusive a contenção de custos do Estado via arrocho na folha salarial, privatizações de empresas estratégicas e diminuição da influência dos bancos públicos sobre o mercado de crédito. Mais ainda: o governo prometeu acabar com o viés desenvolvimentista do Estado brasileiro. Ou seja, tratavam-se de políticas que agradavam aos donos do capital e eram defendidas por interessados neoliberais.

O sofrível crescimento econômico, o desemprego, os baixos níveis salariais, os números da pandemia, os furos anuais sobre o “teto de gastos”, a elevação da relação dívida sobre PIB e a continuidade de desindustrialização do Brasil durante os quatro anos de Jair Bolsonaro, no entanto, parecem não ter abalado os adeptos da religião dos mercados livres. Nesses anos, apesar dos resultados econômicos e sociais insatisfatórios, os neoliberais mantiveram estrondoso silêncio, manifestando, quando muito, críticas pontuais à condução da política econômica. Esse mutismo nos jornais, naturalmente, não foi acidental. Para entendê-lo, basta observar as ações do governo federal que, além de favorecer somente ao capital, atendiam à agenda interessada dos economistas defensores do laissez faire.

Em síntese, afora o embaraço da teoria neoliberal frente ao Brasil recente, o auto interesse ocorreu como a principal explicação para os quatro anos de silêncio dos mercadistas em relação aos desmandos da extrema-direita. A fé na magia de mercados espontaneamente benéficos e o interesse dos donos do capital uniram forças para oferecer ao mais forte ou ao mais informado ou ao mais ambicioso, liberdade para atuar na economia e realizar negócios da forma que quiser. De outro modo, os neoliberais validaram a lei do mais forte em uma das sociedades mais desiguais do mundo, silenciando em favor de poderosos interesses privados.

Esse comportamento, porém, impactou o outro extremo da pirâmide social. Agora e mais uma vez, no Brasil, foram os mais fracos que pagaram a conta do elevado desemprego, da deterioração dos serviços públicos e do encolhimento do futuro e da esperança. Mas isso… Isso não gera indignação entre os neoliberais.

Notas

[1] Soma-se, ainda, a desastrosa gestão da pandemia de Covid-19, um outro capítulo sem resposta.

[2] Ver Oliveira e Amorim (2022). Política econômica, neoliberalismo e mercado de trabalho no Brasil (2015-2021). RBEST Revista Brasileira de Economia Social e do Trabalho, 4(00), e022009.

[3] Entrevista de Hayek ao jornal chileno El Mercurio, publicada no dia 12 de abril de 1981. Ver Angeli e Nemeth Jr. H. Hayek, Campos e a defesa do autoritarismo. Anais do XXI encontro de economia da região Sul (ANPEC Sul), 2018.

[4] A insistência neoliberal surtiu alguns efeitos: retiraram o corte nacionalista original da lei maior e impediram a regulamentação de instrumentos redistributivos de renda.

[5] Solano, E. e Rocha, C. (2021). A ascensão de Bolsonaro e as classes populares. Avritzer, L., Kerche, F. e Marona, M. (orgs.). Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica.

[6] Miguel, L. F. A reemergência da direita brasileira. In: Solano, E. (Org.). O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

Ricardo L. C. Amorim é doutor em Desenvolvimento Econômico e pesquisador do grupo Repensando o Desenvolvimento do LABIEB-IEB (USP). O autor agradece os comentários das professoras Keila C. G. Rosa e Larissa A. Lira, isentando-as das opiniões que expressa.

FonteLe Monde Diplomatique Brasil

Data original da publicação: 12/12/2022

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/quatro-anos-de-silencio-neoliberal/