VOTO DISTRITAL

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Em matéria de eleições, é difícil determinar o que gera mais controversas nos EUA: o sistema de colégio eleitoral, usado para eleger o presidente, ou o sistema de voto distrital, utilizado para eleger deputados federais e estaduais. A maioria da população do país acha que ambos são ruins. Mas a Suprema Corte poderá piorar ainda mais os dois, com uma cajadada só. 

No próximo ano judicial, que começa em outubro,  a Suprema Corte vai julgar o caso Moore v. Harper, em que políticos republicanos da Carolina do Norte pedem à corte (ou a sua maioria conservadora) que valide a "doutrina do Legislativo Estadual Independente". Se a corte atender o pedido, questões eleitorais decisivas deixam de ser resolvidas pelo Poder Judiciário e passam para as mãos do Poder Legislativo de cada estado.

Obviamente, os juízes estaduais não estão gostando nada disso. Por isso, os presidentes dos tribunais superiores dos 50 estados, que compõem a "Conference of Chief Justices", protocolaram um amicus brief bipartidário na Suprema Corte, pedindo aos ministros que rejeitem o pedido dos políticos republicanos.

De acordo com a doutrina do Legislativo Estadual Independente, a Cláusula Eleitoral da Constituição dos EUA "concede aos legislativos estaduais, não às cortes estaduais ou outras entidades, autoridade sobre as regras eleitorais, incluindo a de desenhar os mapas dos distritos eleitorais", argumentam os políticos republicanos em sua petição.

Da mesma forma, as assembleias legislativas teriam autoridade para rejeitar a escolha dos delegados para o colégio eleitoral, tradicionalmente feita pelo partido que ganha a eleição presidencial no estado. Para isso, basta apontar (ou inventar) um motivo, tal como suspeitas de fraude. E, nesse caso, o partido majoritário na Assembleia Legislativa se atribuiria o direito de escolher o grupo de delegados, que cabe a seu estado, para votar em seu candidato à presidente no colégio eleitoral.

O caso perante a Suprema Corte destaca a questão dos mapas dos distritos eleitorais, porque o mapa distrital que a Assembleia Legislativa da Carolina do Norte desenhou foi rejeitado, em fevereiro, pelo Tribunal Superior do estado, com o argumento de que ele foi concebido de uma forma intencionalmente prejudicial ao partido democrata, diluindo "o direito fundamental dos eleitores democratas à igualdade de poder do voto".

A Conference of Chief Justices argumenta, em seu amicus brief, que a Constituição dos EUA não impede as cortes estaduais de examinar se tais mapas violam as constituições estaduais.

"A Conferência pede, respeitosamente, que essa corte esclareça que a Cláusula Eleitoral não impede as cortes estaduais de exercer seu papel tradicional de julgar leis eleitorais, de acordo com as constituições estaduais", diz a petição. "Quando uma corte estadual examina leis estaduais, está agindo em seu papel judicial, não é um papel legislativo. Isso permite ao estado manter, de alguma forma, uma separação de poderes".

Manobras eleitoreiras
O desenho de mapas de distritos eleitorais nos EUA, feito a cada 10 anos com base no último censo, dá margem a manobras eleitoreiras porque a população costuma se concentrar em compartimentos das cidades – são áreas predominantemente de brancos ou de negros ou de latinos ou de gays ou de asiáticos, etc. Cada uma delas tende a ser predominantemente republicana ou democrata, e os partidos sabem, por meio de pesquisas, onde seus eleitores vivem.

Assume-se, por exemplo, que uma área de brancos, de classe média, é predominantemente republicana, enquanto uma área de negros é predominante democrata. Assim, a maioria de um partido na Assembleia Legislativa, ao desenhar os mapas distritais, procura fazê-lo de uma maneira que irá garantir a eleição de mais deputados federais e estaduais do que o partido adversário.

Existem duas táticas principais para fazer isso. Uma delas é chamada de cracking (rachar), que consiste em dividir uma grande área negra (por exemplo) em duas ou três áreas menores e juntar cada uma delas a uma área maior de brancos, na formação de dois ou três distritos, todos com maioria republicana.

A outra tática é chamada de packing (empacotar), que consiste em concentrar todos os supostos eleitores democratas em um único distrito, de forma que dois, três ou quatro distritos vizinhos sejam predominantemente republicanos. Os exemplos se referem ao Partido Republicano, mas os democratas fazem a mesma coisa quando estão no poder no estado.

Essas manobras eleitoreiras são conhecidas nos EUA pelo nome genérico de "gerrymandering" (ou "gerrymander"). O nome é uma junção do nome Gerry com salamander (salamandra). Em 1812, o então governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, desenhou um mapa de distritos eleitorais que claramente favorecia seu partido. Um cartunista do Boston Gazette associou a aparência do mapa a uma salamandra mitológica e lhe atribuiu o nome de "gerrymander".

Apesar de constantemente ridicularizadas, tais táticas continuam a ser usadas até hoje, e dão muito trabalho à Justiça Eleitoral. Algumas cortes rejeitam os mapas e determinam que seja refeito ou que um grupo de especialistas não partidários se encarregue de desenhá-los. Algumas cortes as deixam passar.

Se a Suprema Corte, com maioria conservadora-republicana, atender o pedido dos políticos da Carolina do Norte, o poder das assembleias legislativas de fazer manobras eleitoreiras, para manter um partido no poder,  irá se tornar o padrão eleitoral dos EUA.

 é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-set-11/politicos-esvaziar-papel-justica-eleitoral-eua