A experiência da reforma trabalhista espanhola traz a importante lição de pensar o  acordo social com uma forma constitucionalmente legítima para a regulação do espaço econômico e social que pode ser preservada em sua integridade pelo poder político.

Antonio Baylos

Publicado em parceria com DDF
Tradução: Equipe DMT

  1. Tempo de reformas na Espanha

Sabe-se que na Espanha, após a formação de um governo de coligação entre PSOE e UP, realizada em dezembro de 2020, em minoria e com o apoio de uma parte da chamada “esquerda periférica”, formada principalmente por partidos nacionalistas e independentistas catalães e bascos, além de outras pequenas formações que consolidaram um “bloco de apoio” ao Governo, os efeitos da pandemia de Covid-19 têm sido enfrentados através de um amplo conjunto de reformas legislativas que puseram em prática um verdadeiro “escudo social” para aliviar a consequências mais negativas sobre o emprego e sobre a falta de proteção social[1]. Mas também no arco desses dois anos de crise sanitária foi promovida a assinatura de compromissos internacionais muito relevantes[2], reformas importantes sobre as mudanças que a digitalização trouxe para a organização empresarial e para as formas de prestação do trabalho, com normas que regulamentaram o trabalho à distância e o teletrabalho[3] e, talvez mais conhecido, o vínculo empregatício das pessoas que trabalham nas plataformas de entrega, introduzindo também o direito dos representantes dos trabalhadores à informação sobre o algoritmo como mecanismo de gestão de pessoal e organização do trabalho[4].

A saída da crise proveniente da pandemia passou, então, pela elaboração de um grande plano de transformação, recuperação e resiliência para todos os países europeus negociado com a Comissão Europeia no âmbito do programa Next Generation. Nesse programa, as reformas trabalhistas que devem ser abordadas em um futuro próximo foram incluídas no chamado Componente 23, que indicava, de modo muito preciso, quais seriam as mudanças normativas e as áreas de intervenção como proposta de atuação do Governo na temática trabalhista. O foco dessas propostas foi dirigido: às políticas ativas de emprego e, de forma muito especial, à reforma da contratação temporária; sobre a base de eliminação de algumas das modalidades contratuais; à preferência pelo contrato por tempo indeterminado; o reforço da causalidade temporal; à promoção do contrato de formação. Avaliado positivamente pela Comissão Europeia em 30 de abril de 2021, o Componente 23 “Novas políticas públicas para um mercado de trabalho dinâmico, resiliente e inclusivo” continha quatro reformas com as quais o Governo da Espanha se comprometia que seriam, literalmente, a simplificação dos contratos (reforma 4), a modernização da negociação coletiva (reforma 8), a modernização da contratação e subcontratação de atividades empresariais (reforma 9) e o estabelecimento de um mecanismo permanente de flexibilização e estabilização do emprego (reforma 6). Esse foi o perímetro da negociação que se abre em março de 2021 ao diálogo social tripartite e, portanto, são essas as questões que serão discorridas exclusivamente.

Não foi nada fácil, mas sindicatos, empregadores e governo chegaram  na véspera do Natal de 2021 a um acordo sobre a reforma trabalhista. Seu conteúdo foi marcado por aqueles que foram incorporados ao Componente 23 do Plano de Recuperação, Transformação e Resiliência para obter recursos da União Europeia no âmbito do programa Next Generation. O Acordo muda a orientação do impulso reformista em uma direção contrária àquela que a ortodoxia neoliberal quer imprimir às intervenções no mercado de trabalho – ou seja, a forma de abordar as relações de trabalho a partir da mercantilização do trabalho. Portanto, é aberta uma forma de desenvolvimento dos compromissos de transformação das economias dos Estados-membros da UE que não se deixa abater pelos imperativos de restrição dos direitos laborais e de reforço do unilateralismo empresarial sobre a base da exigência inegável de uma flexibilidade não negociada na administração e organização do trabalho[5]. 

O Acordo não pode ser dissociado de uma estratégia, iniciada há mais de um ano, para reconstruir relações horizontais entre os governos nacionais com vista a uma saída progressista do período pós-Covid-19, o que se reflete na proposta do Mecanismo de Alerta Social, apresentada e recebida muito positivamente na reunião EPSCO em outubro de 2021[6]. Uma coordenação sobre abordagens sociais, hoje mais necessária do que nunca, como reação aos últimos acontecimentos da guerra na Ucrânia, que compromete seriamente a hipótese de crescimento e recuperação econômica empreendida.

O Acordo foi refletido, após sua aprovação pelo Conselho de Ministros, no Real Decreto-Lei 32/2021 de 28 de dezembro em medidas urgentes para a reforma trabalhista, a garantia da estabilidade do emprego e a transformação do mercado de trabalho, e este é o texto que conhecemos como a “reforma trabalhista” de 2021.

Por um lado, a reforma de 2021 intervém modificando profundamente a temporalidade dos contratos, que está ligada às causas estritas derivadas de circunstâncias excepcionais, porque o contrato de trabalho se presume celebrado por tempo indeterminado para os trabalhadores normais e permanentes da empresa, com um grande desenvolvimento da figura do fixo de caráter descontínuo e a recuperação de um elemento formativo ligado à causalidade do contrato de formação dual. Atua de forma muito decisiva contra uma longa tendência em nosso ordenamento jurídico que iniciou com o contrato de promoção de trabalho temporário em 1977, timidamente combatido em 1997, uma tendência à precarização do emprego como forma ordinária de gestão da mão de obra que o Acordo quer combater também a partir da reformulação do sistema sancionatório. Não apenas foca seu compromisso na estabilidade no emprego a partir da restrição da natureza temporária do trabalho, diferente da utilizada pela legislação do ciclo 2010-2012, centrada na extinção e demissão coletiva, mas também incorpora uma série de preceitos que buscam restringir e limitar os poderes empresariais nas demissões coletivas, especialmente a partir da projeção sobre a legislação trabalhista “comum” da experiência com ERTEs durante o estado de alarma[7]. A isso responde o mecanismo RED como um instrumento que pode ser usado como fórmula de salvaguarda do emprego em tempos de crise, evitando o recurso ao ajuste externo do emprego. Mas existem também importantes derrogações em matéria de demissão, nomeadamente a possibilidade de aplicação da demissão por razões econômicas, técnicas, organizativas ou produtivas no setor público. Por sua vez, recupera a capacidade de gestão do sistema pelo acordo coletivo setorial, especialmente em matéria salarial, juntamente com a ultratividade do acordo. No caso de empreiteiros e subempreiteiros, o acordo coletivo aplicável será, prioritariamente, o do setor da atividade desenvolvida no contrato ou subcontrato, independentemente de seu objeto social ou forma jurídica[8].

Como foi apontado, a reforma trabalhista espanhola de 2021 é um exemplo de uma nova política jurídica em matéria trabalhista que se orienta em uma direção contrária às reformas realizadas até agora na Espanha desde a Constituição e a promulgação do ET. Com efeito, nem a importantíssima reforma trabalhista de 1994, nem a de 2002, nem, claro, as que se realizaram no ciclo da crise financeira e da dívida soberana de 2010 – 2012 tiveram como padrão de atuação a defesa dos interesses dos trabalhadores, mas veiculavam como diretriz a flexibilização do trabalho como pauta, o reforço da unilateralidade empresarial e o desequilíbrio na relação de poder na empresa. Consequentemente, a etapa que se inicia em 2020 em nosso país marca uma importante virada na orientação política e democrática da formação do marco institucional para as relações trabalhistas, e a RDL 32/2021 representa um novo marco nesse processo.

É bastante relevante que essa nova orientação política tenha sido possível através de um acordo entre sindicatos e associações empresariais com o governo. A transferência desse acordo para a norma jurídica (que na Espanha é feita através da fórmula do Decreto-Lei de necessidade urgente, que deve ser validada pelo Congresso dos Deputados no prazo de um mês) levanta o problema de sua possível modificação por parte das forças políticas no parlamento, ou, inversamente, se o acordo social pode contornar a intervenção de grupos políticos que não se consideram parte disso. Não somente é uma questão que tem dificultado a extremos inconcebíveis o processo de validação da norma que buscava a reforma trabalhista, mas também levanta uma questão de estratégia política e de forma de governar, em meio à crise, as reformas do sistema de relações trabalhistas. A esse assunto dedicamos o seguinte ponto.

  1. A reforma trabalhista como produto do diálogo social

Convém partir do fato de que as reformas do quadro institucional democrático das relações trabalhistas e previdenciárias na Espanha introduziram um momento de negociação com os agentes sociais em sua elaboração desde o seu início, com a aprovação da Constituição. A princípio, tratava-se de um acordo seletivo que excluía o CCOO como sujeito portador de um projeto de unidade sindical e de organização da assembleia que se considerava intimamente ligado ao apoio político do PCE frente à hegemonia eleitoral na esquerda, conquistada pelo PSOE a partir de 1977. Dessa forma, os acordos entre CEOE e UGT foram decisivos na formação do Título III do Estatuto do Trabalhador e em seu desenvolvimento (Acordo Básico Interconfederal, ABI, 1979 e Acordo Marco Interconfederal, AMI, 1980). Apenas quatro anos depois, na primeira importante reforma do Estatuto do Trabalhador que inaugurou a fase de flexibilização que se pretendia compensar com o reconhecimento institucional dos sindicatos na LOLS, a assinatura do Acordo Tripartite entre o governo socialista, CEOE e UGT, o Acordo Econômico e Social (AES), teria que ser determinante. 

Esse método de legitimação concertada e seletiva da modernização do sistema de relações trabalhistas em torno da flexibilização do mercado de trabalho falhou com a configuração da unidade de ação sindical a partir de 1987. Quando foi rejeitado, pelo poder público, o diálogo com o sindicalismo confederal, a falta de negociação provocou a resposta sindical na forma de uma greve geral em que se expressou não apenas a rejeição do conteúdo das reformas empreendidas, mas também se afirmava a necessidade da participação sindical na sua elaboração. A Greve geral de 14D, que continua sendo a referência icônica de uma resposta de todos os cidadãos para além da resistência ativa do conjunto das pessoas trabalhadoras, abriu um novo período de negociação política articulada sobre a chamada Proposta Sindical Prioritária, na qual o sindicalismo, pela primeira vez em unidade de ação, elaborava um projeto concreto de reformas autonomamente elaboradas que confrontavam o programa de governo[9]. 

Esse duplo mecanismo constituiria o padrão de comportamento dos atores sociais e do governo nas reformas trabalhistas. Uma sequência que ia desde a abertura de mesas de negociação onde se debatia o conteúdo da mudança legislativa que, caso se chegasse a um acordo, passaria diretamente a se tornar norma através da promulgação de um decreto-lei como fórmula urgente de transposição do acordo. Ao contrário, se o que foi negociado implicava um projeto regulatório incompatível com a proposta sindical, a rejeição do acordo levava à convocação de uma greve geral, a partir da qual se voltava a exigir a abertura de um acordo que revisasse o estabelecido.

Esse foi o processo que se seguiu em 1994, após a profunda reforma trabalhista não acordada que provocou uma importante greve geral que, após a derrota eleitoral do PSOE em 1996, foi seguida por um período de negociação autônoma entre CEOE e CEPYME. Anos depois, em 1997, três grandes Acordos Interprofissionais envolveram certa reescrita do conteúdo da reforma de 1994[10]. Esse foi também o padrão da contestação da reforma de 2002, que viu reduzidos muitos de seus efeitos mais perniciosos sobre o recorte do desemprego a partir da negociação realizada após a greve geral[11]. Ao contrário, a grande maioria das pequenas reformas realizadas no quadro normativo trabalhista e de Segurança Social foram precedidas de acordos, entre os quais destacam-se as sucessivas reformas de tempo parcial (1998) e a muito limitada de 2006 sobre a atribuição ilegal de trabalhadores e representação em casos de subcontratação[12]. 

A crise financeira e da dívida soberana vai impor a falência dessa tradição. Embora numa primeira fase, entre 2010 e 2011, pese a declaração de greve frente à norma da reforma, posteriormente se efetuam acordos bilaterais com os empregadores e  se alcança um acordo defensivo muito criticado em matéria de Segurança Social. Esse esquema foi abandonado logo após a vitória eleitoral do PP em novembro de 2011. A reforma trabalhista de 2012, confiada a dois escritórios jurídicos de advogados patronais, é decretada 53 dias após a posse do governo sem sequer abrir um espaço formal ou simulado de reunião com os sindicatos. O governo Rajoy sofreu duas greves gerais de longo alcance em 2012, mas nem a reforma de 2012, nem a reforma da Previdência Social de 2013 foram realizadas tentando negociar com os sindicatos. As greves gerais também não impõem a abertura de um processo de revisão legislativa, pelo contrário, a chamada Lei da Mordaça e a criminalização dos piquetes fazem parte da abordagem que caracteriza essa etapa, um período sem diálogo social que se estendeu até 2018, primeiro pela prevalência do aval do decisionismo unilateral do poder público derivado da maioria absoluta, depois pela dificuldade de um governo minoritário do PP em meio de um turbulento processo de mudança do sistema partidário e exclusão da esquerda da possibilidade de governo[13]. 

A moção de censura e de despejo do governo Rajoy implica o regresso do diálogo social durante 2019, mas sem consequências face aos altos e baixos eleitorais que ocorrem nesse período. Foi preciso aguardar a formação do governo de coalizão – e a irrupção da pandemia que levou à declaração do estado de alarma – para que se estabelecesse o acordo social como regra geral na forma de criação do direito tanto no que diz respeito: à resposta aos efeitos da crise econômica e sanitária sobre o emprego, através dos seis acordos sociais de defesa do emprego que articularam a regulação temporária para evitar a demissão; às novas realidades impulsionadas pelas inovações tecnológicas e pela irrupção da digitalização, como aconteceu com os acordos sobre a regulamentação do trabalho remoto e o reconhecimento do trabalho ao serviço das plataformas digitais de entrega como atividade sujeita ao direito do trabalho[14].

A negociação da reforma trabalhista tem um enquadramento específico no quadro europeu, ou seja, na aplicação da cláusula de salvaguarda do Mecanismo Europeu de Sustentabilidade e no lançamento do programa Next Generation, que pretende não só compensar e financiar o aumento da despesa pública provocado pelo escudo social face à crise da Covid-19, mas também orientar a recuperação econômica para os objetivos de sustentabilidade ambiental e social e de transformação tecnológica. Esse é o terreno sobre o qual se desenvolve o processo de diálogo social desde março de 2021, cuja data de expiração era 31 de dezembro desse mesmo ano. Nove meses de convulsões em que ocorreram transferências e transações que permitiram a todas as partes se apropriarem da natureza benéfica do acordo, que finalmente manteve uma orientação inequívoca de ampliação dos direitos trabalhistas individuais e coletivos dos trabalhadores junto a uma evidente complexidade técnica que se manifestou na RDL 32/2021.

A importância do acordo social que dá origem à reforma trabalhista se manifesta em três âmbitos: como método de governo, conferindo legitimidade social e estabilidade temporária aos seus conteúdos; como forma de produção do direito, enraizada numa manifestação informal do princípio da autonomia coletiva que se transfere para o diálogo político e que se relaciona diretamente com o pluralismo social como elemento fundacional do sistema democrático; por fim, como expressão de participação democrática por meio da ação coletiva dos representantes institucionais dos interesses econômicos e sociais da cidadania. De forma conjuntural, embora tenha sido possivelmente o elemento mais visível, o acordo social é confrontado com a impossibilidade de encontrar um acordo político no espaço parlamentar. Porém, não se deve deixar de notar que, desde a sua criação, o acordo social é uma estratégia fundamental de ação coletiva e sindical na esfera sociopolítica do seu projeto autônomo de regulação das relações trabalhistas.

O debate sobre a validação da RDL 32/2021 levanta, para além do tremendismo do seu desenvolvimento e do seu resultado[15], um problema político interessante. Por um lado, e apesar da tradicional dependência entre a esfera econômica dos patrões espanhóis e o espaço político do Partido Popular, este se posicionou claramente contra o acordo social e o que chamou de “contrarreforma trabalhista” sobre a base de uma defesa do modelo legislativo imposto em 2012 e, o que é mais significativo, rejeitando o método do diálogo social numa exigência intransigente de soberania popular expressa no Parlamento e na discussão política entre partidos, o que resultava coerente com a prática levada a cabo nas políticas de austeridade de 2012. Entretanto, do outro lado do espectro político, formou-se uma frente de rejeição de vozes opostas com os partidos da chamada “esquerda periférica” basca, galega e catalã cuja linha de partida para a rejeição era: o entendimento de que o que foi assinado não foi suficiente; que se consolidou no texto normativo resultante do acordo social um conjunto de medidas que não abordavam a totalidade dos problemas colocados pela terrível situação de degradação de direitos que o quadro legislativo trabalhista fomentava desde 2012. Em grande medida, essas repreensões estavam entrincheiradas por trás da pretensão genérica de “revogar a reforma trabalhista de 2012”. Objetivo que resultava literalmente já superado tanto pelo processo de reforma empreendido a partir de fevereiro de 2020 quanto pelo enfoque da mudança legislativa que se decidiu por esse impulso reformista, mas que forneceu a desculpa que justificou seu questionamento a um texto em que, no entanto, todos apreciavam melhorias óbvias na condição dos trabalhadores. 

O que esse processo de debate suscitou substancialmente foi a oposição entre o acordo social assinado pelo governo, os sindicatos e associações empresariais e o pacto entre os partidos políticos no Parlamento como elementos determinantes da política social. Uma contraposição que até agora não fazia muito sentido, porque antes da experiência do governo de coalizão os acordos sociais eram transferidos para a regra de urgência e depois validados com base em uma maioria de governo baseada no bipartidarismo e onde o respeito ao acordo social era entendido como condição implicitamente assumida no desenho das políticas sociais. Nesses casos, o fator determinante foi, portanto, a decisão do poder público endossada pelos partidos no Parlamento, normalmente por maioria absoluta ou com o apoio dos partidos nacionalistas como complemento aos dois maiores partidos que compartilhavam o poder.

A mudança de rumo imposta pela formação do governo progressista a partir de janeiro de 2020 se caracteriza, como já foi observado, pela manutenção de um intenso processo de diálogo social a partir do qual não apenas vão sendo construídos mecanismos de proteção e amortecimento social diante da crise gerada pela pandemia, mas também reformas materiais que afetam questões substanciais. Esses acordos sociais foram traduzidos em normas jurídicas com o apoio do bloco progressista que apoia o governo de coalizão, sem que, até o momento, as divergências existentes dentro dele tenham se manifestado em questões trabalhistas com forte contestação das normas geradas pelo  diálogo social. Além disso, diante de uma oposição política (os três grupos de direita e de extrema-direita), que não apoiava as reformas sobre o ajuste temporário do emprego para evitar demissões, os acordos sobre a regulamentação do trabalho remoto ou do trabalho em plataformas, o bloco majoritário se apresentou como um sistema partidário que apoiou plenamente o resultado do acordo social e, portanto, o integrou à lógica de governança em matéria social. 

Por ocasião da reforma trabalhista e do processo de diálogo que levou ao acordo de 23 de dezembro, foi elucidada a subalternidade do acordo social à decisão política expressa pelo acordo entre os partidos no parlamento, com a ideia-força de que apenas o compromisso político-partidário expresso no Parlamento teria a legitimidade democrática necessária para modificar a lei. Ou seja, pela primeira vez houve uma bifurcação entre o instrumento de acordo social como método aceito de criação de regras vinculantes para o bloco político que apoiava o programa de governo e a interpretação que algumas – determinantes – forças políticas faziam agora desse programa, discordando do resultado regulatório alcançado por sindicatos, empresários e governo.

Com efeito, esse foi o eixo da argumentação que se opôs à necessidade de respeitar o acordo resultante do diálogo entre sindicatos e associações empresariais, porque o acordo social não poderia substituir uma negociação política baseada nas propostas dos partidos que compunham a maioria parlamentária, de modo que era prioritário preservar a maioria política e a negociação nesse nível frente à conservação da troca concreta realizada pelo diálogo sindical-patronal-governamental no acordo social. Acompanhado de algumas frases lapidares como “a democracia deve prevalecer” ou “você acha que o Congresso é um tabelião, que sela os acordos feitos lá fora?”, que questionavam a opinião desencantada que considerava o Parlamento uma máquina de registrar decisões tomadas fora dela, esse raciocínio apenas sustentava que o acordo social devesse sempre estar subordinado à posterior negociação política entre os grupos parlamentares, que nessa fase subsequente (e prevalente) podem exigir modificações importantes no acordo realizado.

Portanto, o que estava em jogo como problema era que o discurso dessas forças políticas que se recusaram a validar a RDL 32/2021 não compartilhava a consideração do acordo social tripartite como um momento que expressa a concretização de uma certa correlação de forças que delimita um marco concreto de desenvolvimento das relações trabalhistas em um determinado tempo e, por conseguinte, não pode ser modificado ou transformado de fora dele, alterando sua construção autônoma e coletiva. Não se tratava de distinguir entre duas categorias diferenciadas, a social e a política, confinando esta última determinação à esfera parlamentar e atribuindo-lhe um valor superior por entender ser o único espaço vinculado à participação democrática dos cidadãos. 

Deve-se reconhecer, ao contrário, que o acordo tem um valor político indiscutível e expressa a capacidade reguladora em matéria sociopolítica dos sujeitos aos quais o artigo 7 da Constituição espanhola (CE) reconhece a disposição de disciplinar os interesses sociais e econômicos de todos os trabalhadores e empresários do país. O art. 7º do título preliminar da Constituição não é um preceito irrelevante ou   subsidiário ao pluralismo político como fundamento e referência incontornável de qualquer ação política (reconhecido no art. 6 CE). Valorizar o acordo social como um elemento independente da ação política, uma espécie de instância anterior à sua aprovação ou modificação pela atividade parlamentar, é ignorar o espaço de autonomia coletiva que funda o pluralismo social e que, portanto, exige seu pleno respeito pelas forças políticas democráticas.

Além disso, é sabido que o acordo social é um evento democrático fundamental. É uma expressão de um direito à participação democrática com a mesma dignidade da que se expressa através da participação eleitoral e dos acordos parlamentares entre os partidos políticos representados. Não pode ser tratado como um elemento subordinado ou irrelevante para a ação política e o governo está comprometido, também contratualmente, com sua manutenção e preservação. Rejeitar sua viabilidade como norma implica a permanência de um velho reflexo de subordinação da autonomia do social à política parlamentar e à ação governamental definida pela correlação de forças dentro do espaço eleitoral, desconsiderando os termos nos quais a resolução concreta e determinada do conflito de classes se manifesta em um pacto dentro da representação coletiva dos interesses dos trabalhadores e empregadores. Algo que as forças políticas que buscam uma mudança real nas relações trabalhistas também deveriam ter assumido.

Em suma, o acordo social é uma forma constitucionalmente legítima para a regulação do espaço econômico e social que pode ser preservada em sua integridade pelo poder político. O acordo social implica a participação democrática dos cidadãos por meio de seus representantes institucionais nas relações entre capital e trabalho e é sempre útil lembrar que a participação democrática não pode se limitar àquilo que se refere ao mecanismo representativo eleitoral, mas necessariamente se amplia a outras expressões de ação e representação coletiva diretamente relacionadas ao modelo de transformação social estabelecido pelo art. 9.2 CE. Essa é possivelmente a lição mais relevante que a recente experiência espanhola pode contribuir para o debate político sobre as reformas trabalhistas em um sentido progressista.

Notas

[1] Existe uma vasta literatura especializada que vem analisando e explicando as medidas adotadas e sua evolução regulatória. Uma visão geral desses processos regulatórios, em Baylos, 2021: 15 ss.[2] A ratificação das Convenções da OIT como a C 190 e C 177, a da Carta Social Europeia revista ou o protocolo de reclamações coletivas perante o Comitê Europeu dos Direitos Sociais, como os marcos mais importantes. Sobre este último, v. Salgado, 2021.[3] Veja as análises bem detalhadas de Casas, 2020 e a monografia de Trillo, 2021a.[4] A conhecida como “Ley Rider”, v. Trilho, 2021b.[5] Esse é um elemento que tem sido afirmado por unanimidade pelos comentadores do Acordo Social e da consequente RDL 32/2021. Cfr. Aparicio, 2021.[6] Trata-se de um mecanismo europeu que serve para corrigir os desequilíbrios sociais e que está incorporado aos instrumentos de coordenação previstos no MEDE, juntamente com os já existentes de desequilíbrio econômico e déficit excessivo, hoje suspensos face à crise sanitária e econômica de Covid-19. O Mecanismo de Alerta Social é promovido pelos governos da Bélgica e Espanha e está encontrando uma boa recepção entre os diferentes países da União. https://prensa.mites.gob.es/WebPrensa/noticias/ministro/detalle/4038 (última captura, 01.03.2022)[7] Nota da tradução: regulamentado no artigo 116.2 da Constituição espanhola, o estado de alarma é o grau mais baixo dos três estados de emergência previstos na citada Constituição. Permite ao governo executar ações e impor políticas que normalmente não seriam permitidas e pode ser declarado em todo o país ou em parte dele.[8] Também aqui a literatura especializada espanhola concentra-se em descrever, comentar e interpretar as novidades legislativas da reforma nas diferentes áreas em que teve impacto. No entanto, os tempos de edição fizeram com que ainda não houvesse artigos doutrinários importantes delineando as primeiras interpretações da norma. Porém, a proliferação exuberante de sites e páginas da web permite a emanação de uma longa e extensa série de comentários. Desta-se nesse sentido: a série que a Associação Espanhola de Direito do Trabalho e Previdência Social lançou como Briefs sobre a reforma; o site NET21.org, com interessantes abordagens de certa extensão; os blogs de Eduardo Rojo e Foro de Labos, que mantêm vivas intervenções sobre alguns temas tratados. A isso devemos acrescentar as esplêndidas tabelas comparativas preparadas pela revista La ciudad del Trabajo da editora Bomarzo, dirigida pelo magistrado Miquel Falguera, onde também são cuidadosamente coletados todos os comentários doutrinários que surgiram sobre esse assunto no último mês.[9] O relato detalhado desses processos de consulta desde a promulgação da Constituição até a greve geral de 14 de dezembro de 1988, em Baylos, 2017: 83 ss[10] A importância da reforma de 1994 como implementação de um paradigma de flexibilização nas relações de trabalho, parcialmente corrigida a partir da autonomia coletiva e da negociação interprofissional bilateral em 1997, está amplamente estabelecida para todos, v. Valdés Dal-Re, 1997 e Asociación Española de Iuslaboralistas, 1997, com orientações confrontadas sobre o significado político dessas reformas.[11] Gete y Valdés Dal-Re, 2003[12] Ramos, 2007.[13] Sobre o caráter neoautoritário do ciclo reformista da crise financeira e, em particular, do projeto remercantilizante e degradante de direitos da reforma de 2012, Baylos, 2013.[14] Baylos, 2021: 28ss.[15] Como se sabe, o texto não teve o apoio de boa parte dos partidos da esquerda periférica que apoiam o governo, ao qual se somou o voto contrário de dois deputados de um partido regionalista navarro que haviam comprometido pelo contrário o seu apoio ao texto. Ao final, a RDL 32/2021 foi validada pelo voto de um deputado do Partido Popular, que se confundiu em sua opção, salvando assim a aprovação do texto legal.

Referências

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Antonio Baylos é Doutor em Direito pela Universidad Complutense de Madrid; Professor Catedrático de Direito do Trabalho e Seguridade Social na Universidad de Castilla La Mancha – Madrid; Diretor do Departamento de Ciência Jurídica da Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de Ciudad Real; Diretor do Centro Europeu e Latino-americano para o Diálogo Social (CELDS).

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/reforma-trabalhista-na-espanha-a-importancia-constitutiva-do-dialogo-social/