OPINIÃO

Por 

A promulgação da Emenda Constitucional nº 103/2019 trouxe ao ordenamento jurídico pátrio uma série de alterações extremamente lesivas à população brasileira, seja para os trabalhadores da inciativa privada, seja para os servidores públicos.

Entre as principais alterações, podemos destacar majoração e progressividade das alíquotas previdenciárias, supressão das regras de transição para aposentadoria até então asseguradas pelas emendas constitucionais anteriores, alterações nas regras de pensão por morte, entre outras.

Ao longo de toda a tramitação da PEC 06/2019, o governo federal fez ampla campanha publicitária no sentido de que a reforma da Previdência era indispensável para o futuro de nosso país, porém em nenhum momento apresentou estudo atuarial consistente/válido, embasado em critérios científicos, que demonstrasse a adequação e necessidade das alterações constitucionais, bem como que estavam sendo adotadas as medidas menos gravosas para a coletividade, em amplo desrespeito ao princípio jurídico da proporcionalidade.

Uma análise detalhada por profissionais especializados indica claramente que os critérios e as regras estabelecidos pela EC 103/2019 não promovem qualquer equilíbrio econômico-financeiro e atuarial ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS).

Passamos a sucintamente abordar uma das falhas latentes dos argumentos apresentados pelo governo federal. Para apresentar um suposto cenário de déficit, o governo considera como receita apenas aquela decorrente da geração atual de servidores ativos, desconsiderando tanto a geração passada como a futura. Já no tocante a despesas o governo federal computa tanto o pagamento de aposentadorias e pensões da geração atual como da passada.

Assim, o Executivo federal promove uma distorção de resultados, considerando uma geração para efeito de receita e duas para efeito de despesa. Cumpre destacar que nosso regime é de caráter solidário e contributivo, de modo que são as contribuições da geração futura que pagarão as aposentadorias e pensões da geração atual.

De extrema importância destacar que o artigo 40, §20, da Constituição Federal exige que o RPPS seja administrado por uma Unidade Gestora Única, que nunca foi criada pelo governo federal, o que prejudica a avaliação do equilíbrio financeiro e atuarial e impede a participação dos trabalhadores, nos termos do artigo 10 da Constituição Federal. Além disso, cristalino a afronta ao princípio da transparência (artigo 40, §22, Constituição Federal), esvaziando ainda mais a credibilidade dos argumentos trazidos pelo Executivo.

Em relação à majoração e progressividade das alíquotas previdenciárias, podemos destacar que o ordenamento jurídico foi violado por diversos aspectos: 

a) Nítido o caráter confiscatório de tal alteração constitucional, o que é vedado pelo artigo 150, IV, da Constituição Federal. O caráter confiscatório decorre da soma da alíquota previdenciária (com a reforma pode chegar a 22%) com a maior alíquota do Imposto de Renda (27,5%). Se somarmos ainda os tributos diretos, como IPVA e IPTU e indiretos, temos, conforme estudos realizados, um acréscimo médio de 15,9% na carga tributária, o que totaliza 65,4% da renda;

b) Clara violação ao princípio da contrapartida, tendo em vista que deve existir referibilidade entre a contribuição paga e o benefício recebido, dado o caráter contributivo e solidário do Regime RPPS; e

c) Violação do princípio da irredutibilidade de vencimentos e da proibição do excesso.

Outro tema de bastante relevo constante da EC 103/2019 foi a significativa alteração das regras de transição dos servidores públicos para aposentadoria.

A reforma da Previdência suprimiu as regras de transição até então vigentes (Emendas Constitucionais 20/1998, 41/2003 e 47/2005) e estabeleceu novas regras de transição extremamente lesivas aos servidores públicos, em nítido desrespeito ao princípio da proporcionalidade, na medida em que estes tiveram um acréscimo exorbitante e irrazoável para que possam se aposentar.

Cumpre destacar que a alteração constitucional supramencionada viola frontalmente o direito a um regime de transição proporcional, o qual decorre do princípio da segurança jurídica e da confiança legítima que os servidores públicos depositam no ordenamento jurídico.

No quadro associativo da Unafisco Nacional, temos casos concretos de auditores fiscais da Receita Federal do Brasil que com as novas regras de transição terão que cumprir um período muito superior para atingirem a aposentadoria do que os períodos previstos nas regras de transição decorrentes das emendas constitucionais anteriores. Como exemplo citamos o caso do servidor que se aposentadoria no dia 24/2/2020 — 104 dias após a publicação da EC 103/2019 — e agora terá que aguardar até 24/2/2022 — 835 dias após a publicação da EC 103/2019, o que representa um acréscimo de 603% no tempo para se aposentar.

Não podemos deixar de abordar também as alterações no que tange às regras de pensão por morte que acarretaram drástica redução no valor do benefício previdenciário, violando frontalmente o princípio da vedação do retrocesso e da dignidade da pessoa humana.

O artigo 23 da EC 103/2019 estabelece que a pensão será equivalente a uma cota familiar de 50% do valor recebida pelo segurado ou servidor ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito, acrescida de cotas de dez pontos percentuais por dependente, até o máximo de 100%.

Citamos como exemplo um servidor na ativa com 20 anos de contribuição. Com a entrada em vigor da EC 103/2019, considerando que a média das remunerações permaneça igual à última remuneração, a aplicação do novo cálculo (60% da média — artigo 26, §2º — e cota de 60% — artigo23, caput) irá resultar numa pensão de com redução de 64% em relação ao vencimento básico do instituidor.

Ante o cenário em tela, a Unafisco Nacional, bem como outras entidades de classe, propuseram ações diretas de inconstitucionalidade, objetivando que o Supremo Tribunal Federal reconheça as inúmeras inconstitucionalidades eivadas nas EC 103/2019.

A ADI 6367, proposta pela Unafisco Nacional, está instruída com pareceres de dois renomados juristas, professores Ingo Sarlet (doutor em direito pela Universidade de Munique-Alemanha) e Elival da Silva Ramos (livre-docente pela Universidade de São Paulo), os quais em seus pareceres esmiúçam a total ausência de consonância da EC 103/2019 com os princípios que regem nossa Constituição Federal.

Além disso, a ADI 6367 ainda está instruída com o parecer do professor livre-docente pela Unicamp Pedro Paulo Zahlut Bastos, que demonstra cabalmente a inconsistência das argumentações do governo federal no sentido de que há desequilíbrio econômico-financeiro prévio à edição da EC103/2019, a justificar a reforma da Previdência.

O ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Roberto Barroso é o relator das ADIs que tratam da reforma da previdência e determinou que a apreciação da medida cautelar, no que tange ao tema das alíquotas previdenciárias, seja submetida ao plenário virtual nesta sexta-feira (19/6).

Em que pese a urgência para o deferimento da medida cautelar, tendo em vista que os inconstitucionais efeitos da EC 103/19 já estão produzidos, a Unafisco Nacional, dada a complexidade e relevância da matéria, entende que o tema não está suficientemente maduro para ser apreciado pelo STF, mesmo em sede de medida cautelar, ainda mais sob a égide do plenário virtual, motivo pelo qual apresentou pedido de destaque.

Entendemos que uma discussão dessa magnitude demanda a realização de audiências públicas, bem como a constituição de uma comissão de peritos, para que fique ainda mais cristalino a ausência de cálculo atuarial válido/consistente por parte do Executivo que tenha instruído a edição da EC 103/19.

Cumpre destacar que o STF, ao apreciar o RE 346.197, cujo relator foi o ministro Dias Toffoli, posicionou-se no sentido da existência de ofensa ao princípio do não confisco a instituição de alíquotas previdenciárias progressivas. Pela impossibilidade de instituição de alíquota progressiva também se manifestou o STF no julgamento do RE 365.318, cuja relatora foi a ministra Carmen Lucia.

Importante mencionar que o ministro Luiz Roberto Barroso reconheceu a existência de repercussão geral, por meio do ARE 875.958, destacando a necessidade de se avaliar legislação que majora alíquota previdenciária à luz do caráter contributivo do regime previdenciário e dos princípios do equilíbrio financeiro e atuarial, vedação ao confisco e razoabilidade.

Isso posto, é de suma importância que o Supremo Tribunal Federal faça uma análise minuciosa sobre os aspectos jurídicos da EC 103/2019, ao julgar as ações diretas de inconstitucionalidade em trâmite, a fim de que possamos salvaguardar a população brasileira das inúmeras inconstitucionalidades ali contidas.

 é auditor fiscal, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) nacional e doutor em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco.

Revista Consultor Jurídico