Para além dos aspectos estritamente econômicos, as ações implementadas nos últimos dois anos enfatizaram a conexão entre segurança nacional e reindustrialização.

André M. Cunha, Andrés Ferrari e Luiza Peruffo

“Onde está escrito que a América não pode liderar o mundo na manufatura novamente? Por muitas décadas, importamos produtos e exportamos empregos. Agora, graças a tudo o que fizemos, estamos exportando produtos americanos e criando empregos americanos.”

(Joe Biden, State of the Union Address 2023)

Reindustrialização e Segurança Nacional

Em seu discurso sobre o estado da União, o presidente Biden destacou o vigor da economia estadunidense com a recuperação do setor manufatureiro e investimentos robustos na renovação da infraestrutura econômica, combate aos efeitos das mudanças climáticas, inovação tecnológicas e melhorias sociais. Nas estimativas oficiais, a gestão Biden gerou 12 milhões de empregos e estimulou 200 grandes empresas privadas a anunciarem US$ 700 bilhões em novos investimentos em setores-chave para o futuro da competitividade estadunidense, particularmente em semicondutores, energia, veículos elétricos, baterias e outros segmentos de fronteira tecnológica. Para além dos aspectos estritamente econômicos, as ações implementadas nos últimos dois anos enfatizaram a conexão entre segurança nacional e reindustrialização. Para garantir a capacidade de o país manter sua posição de poder hegemônico, haveria de se deixar para trás parte das políticas neoliberais.

Na perspectiva da administração Biden, a segurança nacional está intrinsicamente ligada ao desenvolvimento de políticas que reduzam gaps em infraestrutura física, humana e tecnológica. Isto fica claro no documento “National Security Strategy”, lançado em outubro de 2022. A estratégia da administração Biden-Harris assume que “… a era pós-Guerra Fria acabou definitivamente e uma competição está em andamento entre as grandes potências para moldar o que vem a seguir” (p.6). Para conter seus rivais estratégicos, os EUA não poderiam ficar à mercê das forças de mercado, cuja lógica durante os anos de predomínio do neoliberalismo foi a de distribuir a produção industrial em nível global de forma a atender aos interesses das corporações privadas: reduzir custos, maximizar a valorização das ações e garantir bônus generosos para os gestores. 

Assim, a reindustrialização e as políticas de promoção de transformações na estrutura produtiva se tornaram temas ainda mais visíveis. A retomada do ativismo estatal por parte dos Estados Unidos (EUA) e dos países europeus, com ênfase em novas tecnologias digitais, economia verde e infraestrutura, busca contra-arrestar o movimento das últimas décadas de deslocamento da produção manufatureira para a região asiática, em geral, e a China, em particular. As estatísticas da ONU sobre contas nacionais nos permitem estimar que, no começo dos anos 1970, 75% do valor adicionado na indústria de transformação era gerado na Europa e na América do Norte, excluído o México. Em 2020, tal participação recuou para 40%. Neste mesmo período, os países asiáticos, incluindo Japão, passaram de 14% para 54%. No final dos anos 2020, a China, nova “fábrica do mundo”, detinha ¼ da produção manufatureira global, cabendo aos EUA a posição de segundo lugar.

Para reverter esta situação, a administração Biden aprovou novas legislações que se estruturam em torno da ideia de que o país precisa recuperar sua infraestrutura e sua capacidade de liderar as inovações tecnológicas e a produção manufatureira em setores-chave, bem como enfrentar desafios estruturais como a ascensão da China e as mudanças climáticas. Tais medidas envolveram, inclusive, mediações e apoios conjuntos de Democratas e Republicanos, o que não deixa de ser surpreendente neste período de tanta polarização. Este fato indica que há aspectos onde a convergência de visões é elevada, particularmente na conexão entre indústria e segurança nacional. Atualmente, cerca de duzentas mil empresas são fornecedoras de produtos, serviços e equipamentos utilizados pelas Forças Armadas estadunidenses no quesito armamentos. De acordo com a base de dados do SIPRI, entre 1991 e 2021, os EUA gastaram, em média, 3,9% do PIB anualmente em dispêndios militares. Isto equivale a quase o dobro da média mundial. Para se colocar em perspectiva, seguem os indicadores de outros poderes regionais ou globais, sempre como proporção dos respectivos produtos: Alemanha (1,3%), França (2,1%), Reino Unido (2,5%), Japão (1,0%), China (1,8%), Índia (2,7%) e Rússia (2,8%).

Muito Mais do Mesmo

Se a relação entre segurança nacional e indústria não é nova, cabe destacar que três políticas da administração Biden sinalizam para uma outra escala de investimentos e prioridades. Do ponto de vista quantitativo envolvem pelo menos US$ 2 trilhões (8% do PIB de 2002) em recursos orçamentários a serem dispendidos nos próximos anos em medidas de caráter estrutural. São elas: The Infrastructure Investment and Jobs Act”, que destina US$ 1,2 trilhão para investimentos em infraestrutura nos próximos dez anos, particularmente na renovação de estradas, pontes, redes de comunicação e energias renováveis; The Chips and Science Act, que prevê estímulos de US$ 280 bilhões para desenvolver tecnologias-chave e garantir a ampliação na produção de semicondutores;  The Inflation Reduction Act, que enfatiza despesas de US$ 391 bilhões – e que podem atingir o dobro deste valor – para que o setor produtivo possa utilizar novas fontes de energia.

The Economist analisou tais medidas em sua primeira edição do mês de fevereiro. Admite-se que as políticas de Biden já estão produzindo resultados concretos em termos de novos anúncios de investimentos nos setores beneficiados por subsídios, de novas plantas para a produção de semicondutores a segmentos relacionados à “economia verde”. Bancos e consultorias estão otimistas com as novas perspectivas. O Credit Suisse afirmou que o IRA pode tornar os EUA o líder global na economia de baixo carbono a partir dos anos 2030. Este banco estimou investimentos totais de US$ 1,7 trilhão com o IRA, o que equivale ao quádruplo dos subsídios já anunciados naquele programa – ou o dobro do seu teto em potencial.

Citigroup sugere que os aspectos relacionados à redução de emissões serão positivos, ainda que apresente restrições aos elementos protecionistas. Perspectivas semelhantes aparecem no JP MorganGoldman SachsBlackRockEY, dentre outros. A McKinsey fez eco às estimativas do Congressional Budget Office (CBO) de que o programa é consistente com a redução dos déficits públicos em até 238 bilhões na próxima década. Isto porque, se por um lado, o IRA prevê novos gastos totais de US$ 499 bilhões, entre estímulos ao setor produtivo, subsídios na saúde etc., e receitas de US$ 738 bilhões, entre novos impostos e eliminação de incentivos criados em administrações anteriores.

Em resposta à ampliação dos subsídios ao setor privado estadunidense, os países europeus estão trabalhando para rever sua legislação restritiva aos estímulos específicos a determinados setores da economia, o que a literatura especializada denomina de políticas verticais. Assim como nos EUA, os setores relacionados à mitigação dos problemas climáticos serão priorizados. O European Green Deal será financiado por recursos já previstos no Next Generation EU Recovery Plan, cujo orçamento é de 2,0 trilhões de euros. Cerca de 1/3 deste montante irá para os investimentos verdes. A Comissão Europeia denomina o Next Generation de o maior programa de estímulos da região, o qual tornará a Europa “mais verde, digital e resiliente”.

Para Além dos EUA: o retorno da política industrial

A política industrial nunca desapareceu completamente, nem mesmo nos EUA, que foi um pioneiro neste quesito com as iniciativas do seu primeiro Secretário do Tesouro, Alexander Hamilton. A assim-chamada proteção da indústria infante era umas estratégias centrais da jovem nação, assim como a criação de fontes de financiamento de longo prazo por meio da dívida pública. Ha-Joon Chang em seu “Chutando a Escada” detalha os instrumentos protecionistas utilizados pelas nações que se industrializaram primeiro, perpassando barreiras tarifárias e não tarifárias, controles sobre a disseminação de novas tecnologias, compras governamentais, financiamento público, investimentos em infraestrutura etc. Em “Concrete Economics”, Cohen e DeLong demonstram que a visão hamiltoniana perseverou nos EUA em diversos momentos históricos.

Chris Freeman e Luc Soete em “Economics of Industrial Innovation” dissecam a relação entre os gastos militares e as inovações tecnológicas na indústria moderna. Não raramente as tecnologias diruptivas na vida social foram desenvolvidas ou tomaram impulso por meio das demandas governamentais na área de segurança. Os custos e os riscos derivados de pesquisas básicas ou aplicadas são particularmente elevados para o que os economistas denominam de “inovações radicais”. Quando estas são percebidas como úteis desde a perspectiva militar, os governos das nações que disputam o poder global não hesitam em escapar das armadilhas do “orçamento equilibrado”. Mariana Mazzucato aprofundou argumentos e evidências em seus livros, tratando de perceber os sistemas de inovação e o papel do Estado Empreendedor, bem como a capacidade de programas estruturados em torno de “missões” – “vencer o nazismo”, “ir para a Lua”, “salvar o planeta da catástrofe climática” etc. – têm para catalisar processos virtuosos de inovação e de crescimento econômico.

Discute-se o retorno da política industrial desde a eclosão da crise financeira global (2007-2009), que foi um primeiro assalto às certezas propagadas pelo mainstream da Economia acerca dos benefícios do Estado mínimo, da liberalização comercial e financeira, das privatizações e da desregulamentação. Em paralelo, o avanço da China como uma potência manufatureira e tecnológica, a necessidade de criar empregos e de enfrentar as mudanças climáticas, e os desafios colocados pela revolução digital se tornaram o mote de mais de uma centena de experiências com novas políticas de promoção dos setores produtivos, conforme constatado por levantamento da Unctad

Dentro das instituições multilaterais, usualmente mais refratárias ao ativismo estatal, Reda Charif e Fuad Hasanov, economistas seniores do Fundo Monetário Internacional (FMI), junto com colegas daquela instituição, estão na linha de frente do resgate da discussão sobre políticas de indução de transformações na estrutura produtiva. Este tema havia saído da agenda “correta” do mainstream da Economia na era das trevas da hegemonia da ideologia neoliberal. Em 2019, eles publicaram o paper “The Return of the Policy That Shall Not Be Named: Principles of Industrial Policy”. O sugestivo título nos permite evocar o poema “Two Loves” do Lord Alfred Douglas, que foi utilizado para incriminar o escritor Oscar Wilde no infame processo que resultou em sua prisão. Assim como a homossexualidade era considerada um desvio criminoso na Inglaterra vitoriana, o que hoje choca os espíritos mais elevados, a defesa do ativismo estatal ganhou o status de grave heresia. Evidências neste sentido aparecem no estudo “Crouching Beliefs, Hidden Biases: The Rise and Fall of Growth Narratives”, também de Charif e Hasanov.

Em “Promoting Innovation: The Differential Impact of R&D Subsidies” os pesquisadores do FMI exploram os efeitos das políticas de subsídio à inovação, ao passo que em “Industrial Policy for Growth and Diversification: A Conceptual Framework” enfatiza-se que países com estruturas produtivas mais densas e diversificadas responderam melhor aos desafios impostos pela pandemia da Covid-19. O que o FMI está constatando nunca deixou de ser o norte das pesquisas e trabalhos realizados por sucessivas gerações de economistas que se mantiveram distantes das simplificações das doutrinas convencionais, com destaque para Gabriel Palma, Ha-Joon Chang, Robert Wade, Alice Amsden, Dani Rodrik, Joseph Stiglitz, Mariana Mazzucato, Giovanni Dosi, Carlota Perez, para citar alguns. Da mesma forma, instituições como Unctad, Cepal e Unido seguiram recomendando as políticas de estímulo ao fortalecimento produtivo, tecnológico e comercial, especialmente em países emergentes e em desenvolvimento. A consultoria McKinsey constatou que tais políticas estiveram no centro do sucesso das economias de maior crescimento da renda per capita nos últimos cinquenta anos.

Para marcar seus dois anos de mandato, Biden comemora o que considera ser uma retomada da indústria de transformação e a realização do maior programa de investimentos em cinco décadas, o qual poderá redundar em mudanças profundas na economia nacional. O país se prepara para os desafios da disputa pelo poder global diante de rivais potentes, particularmente a China. Por isso mesmo, Biden afirmou em seu discurso sobre o Estado da União: “Não vou me desculpar por estarmos investindo para fortalecer a América. Investir na inovação americana, em indústrias que definirão o futuro e que o governo da China pretende dominar.”

André Moreira Cunha, Andrés Ferrari e Luiza Peruffo são docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

Fonte: GGN
Data original da publicação: 08/02/2022

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/reindustrializacao-e-seguranca-nacional-nos-estados-unidos/