Secretário de Trabalho norte-americano Martin Walsh constatou a presença de ao menos 31 crianças entre 13 e 17 anos de idade em ocupações perigosas.

Allan de Campos Silva

Osecretário de trabalho norte-americano Martin Walsh denunciou o emprego de crianças para a limpeza noturna das fábricas da JBS em Grand Island, Nebraska e Worthington, Minnesota, subcontratados pela empreiteira PSSI – Packers Sanitation Services. A denúncia foi apresentada à Justiça Federal em 9 de novembro. Por meio de uma investigação conduzida desde agosto deste ano, Walsh constatou a presença de ao menos 31 crianças entre 13 e 17 anos de idade em ocupações perigosas. Uma criança de 13 anos apresentou queimaduras químicas cáusticas em razão dos produtos de limpeza utilizados – os trabalhos realizados pelos menores incluem a limpeza de equipamentos perigosos com produtos de limpeza corrosivos e a limpeza de pisos onde os animais são abatidos.

O Fair Labour Standards Act proíbe o trabalho de menores de 13 anos, assim como o trabalho após as 21 horas de menores entre 14 e 15 anos entre 1º de junho até o Dia do Trabalho (primeira segunda-feira de setembro) e depois das 19 horas no restante do ano. A lei também restringe o número de horas que menores podem trabalhar nos dias de aula e proíbe as crianças de manipular equipamentos perigosos.

Diante das acusações, o Departamento de Trabalho dos Estados Unidos solicitou o impedimento temporário imediato da prestação de serviços da PSSI. No dia 10 de novembro um juiz federal acatou a solicitação, impactando as operações da empresa, que conta atualmente com 17 mil trabalhadores responsáveis pela limpeza de aproximadamente setecentas plantas frigoríficas ao redor dos Estados Unidos.

De acordo com as evidências iniciais, Walsh acredita que a prática ilegal esteja presente em aproximadamente quatrocentas outras plantas no país. A PSSI se recusou a compartilhar informações com o Departamento de Trabalho dos EUA e teria atuado no sentido de “prevenir, desencorajar, vigiar ou ameaçar funcionários em cooperar com o Departamento do Trabalho” assim como “retaliar quaisquer funcionários que participassem da investigação”.

A atuação da JBS nos Estados Unidos tem sido objeto de críticas de pesquisadores, da casa Branca e da sociedade civil organizada, desde a consolidação da internacionalização da companhia, alavancada pela política brasileira das campeãs nacionais. A atuação das gigantes do setor – o chamado Big Meat – foi alvo de um amplo escrutínio por parte de um subcomitê do Congresso norte-americano sobre a Covid-19 em frigoríficos. De acordo com a investigação, publicada em maio, a indústria da carne – Smithfield, JBS, Tyson – atuou em ampla coordenação com a administração Trump para proteger seus lucros e balanças de exportação enquanto colocava em risco a vida de trabalhadores.

Em visita a Minnesota em junho de 2022, entrevistei trabalhadores e lideranças trabalhistas em Cold Spring e Worthington relatando violações e negligência da parte da JBS em meio à surto de Covid-19, como parte de um esforço de pesquisa conduzido desde o ano passado em parceria com meus colegas Kenichi Okamoto (St. Thomas University) e Rob Wallace. O contágio na planta de Cold Spring foi notificado na primeira semana de maio de 2020 e atingiu inicialmente 84 trabalhadores. Menos de uma semana depois, 194 funcionários já haviam sido contaminados. No dia 28 de abril de 2020, o então presidente Trump promulgou um decreto, permitindo o funcionamento dos frigoríficos durante a pandemia, apenas uma semana antes da notificação do contágio na planta de Cold Spring. Funcionários da JBS de Cold Spring relataram que a empresa não seguia os padrões de distanciamento social e encorajava os funcionários a trabalhar, mesmo que doentes. Cerca de 80% dos funcionários da planta de Cold Spring são imigrantes da Somália, que, a partir dos anos 1990, constituíram no estado de Minnesota a mais importante comunidade somali nos Estados Unidos. A comunidade somali de trabalhadores da planta de Cold Spring organizou protestos, exigindo o fechamento da unidade por duas semanas para desinfecção e adoção de melhores protocolos de prevenção e controle no frigorífico. Não obstante, o contágio na planta de Cold Spring logo foi associado à espacialização

Já o contágio de Covid-19 no frigorífico operado pela JBS na cidade de Worthington, cuja população é de cerca de 13 mil habitantes, foi notificado na primeira quinzena de abril de 2020. Esse fato levou ao fechamento do frigorífico no dia 20 de abril. A planta, que emprega cerca de 2 mil pessoas, testou positivo para Covid-19 em 239 dos seus funcionários. Ao contrário do frigorífico de Cold Spring, os funcionários de Worthington têm históricos de imigração bastante heterogêneos. São imigrantes latino-americanos, africanos e asiáticos de nacionalidades muito diversas: México, Guatemala, Mianmar e Eritréia. Esse fato teria dificultado a adesão a protestos e à reivindicação coletiva por maior proteção, durante a pandemia. No entanto, a presença de uma organização comunitária teria sido fundamental para sensibilizar os trabalhadores na busca de maior proteção sanitária. O frigorífico de Worthington está entre outras 153 unidades associadas a condados com altas taxas de contaminação por Covid-19 nos Estados Unidos. Em abril de 2020, o condado de Nobles, dentro de Worthington, apresentava a maior taxa de contaminação do estado de Minnesota e já registrava ao menos uma morte de funcionário da JBS. De acordo com uma liderança comunitária de Worthington, a espacialização da Covid-19 neste frigorífico estaria ligada também ao aumento de turnos extras de trabalho como resposta à pressão sofrida pela JBS diante do fechamento de uma outra planta, operada pela JBS em Marshalltown, no estado vizinho de Iowa, na primeira quinzena de abril de 2020. O contágio no frigorífico de Worthington estaria relacionado também à espacialização da Covid-19 sobre a cidade média de Sioux Falls, a 100 km de Worthington, no estado vizinho de Dakota do Sul.

Os frigoríficos nos Estados Unidos dependem fortemente do emprego de imigrantes. Os trabalhadores nessas posições geralmente são mal pagos e temem ser penalizados por revelar sintomas e ficar em casa sem remuneração. Muitos trabalhadores sofreram cortes salariais, redução de horas e impactos negativos na saúde. Alguns desses trabalhadores moram em habitações superlotadas e muitos vivem em casas de famílias intergeracionais. Isso dificulta o distanciamento social adequado e aumenta as chances de idosos adoecerem na comunidade.

A grave denúncia sobre as práticas da JBS nos Estados Unidos acontece na mesma semana em que foi divulgada no Brasil a investigação da Repórter Brasil/Unearthed conduzida desde 2018 e que revelou que a empresa comprou gado de uma quadrilha que atuava em Rondônia, conhecida como os maiores desmatadores do Brasil. A atuação da JBS no arco do desmatamento nos últimos anos acumula uma série de violações, dentre as quais a responsabilidade pela espacialização da Covid-19 no município de São Miguel do Guaporé, também em Rondônia. Na ocasião, cerca de 60% do município contraiu a doença diante da recusa da empresa em colocar em prática protocolos de testagem, afastamento e controle da pandemia no frigorífico. A JBS foi condenada por dano moral coletivo e obrigada a pagar multa de R$ 20 milhões.

A atuação das gigantes de carnes em meio à pandemia da Covid-19 tem sido objeto de reflexão crítica por pesquisadores nos Estados Unidos. Ian Carrillo e Annabel Ipsen (2020) entendem que a transformação dos frigoríficos em epicentros de Covid-19 remete à necessidade de enfrentar as precariedades estruturais do agronegócio, que reiteradamente transformam os locais de trabalho em zonas de sacrifício de trabalhadores. Ivy Ken e Kenneth León (2020) argumentam que a crise sanitária nos frigoríficos dos Estados Unidos é consequência da consolidação de um regime de governança corporativa, orientado por uma política de morte, que consiste em coagir trabalhadores, em maior parte não brancos, a arriscarem suas vidas para manter as esteiras da indústria em funcionamento.

Agora, a grave denúncia sobre o trabalho infantil nas plantas da JBS nos Estados Unidos, na mesma semana em que o mundo volta os olhos para a COP27 no Egito, adiciona insulto à injúria, uma expressão que os irmãos Batista já devem ter ouvido à exaustão em sua jornada expoliatória em direção à terra prometida. Urge entender que frigoríficos estão no centro do modo capitalista de produção de doenças, fome, destruição ambiental e morte, cujos efeitos deletérios hoje se fazem sentir com mais força sobre os povos originários na fronteira do desmatamento na Amazônia e sobre as populações latinas, africanas e asiáticas que trabalham nos frigoríficos. Diante desse sistema cruzado de explorações e destruições, precisamos internacionalizar também as nossas lutas: e colocar de pé uma rede de denúncias e proteção que fortaleça as iniciativas daqueles sujeitados pelo agronegócio em ambos os países.

Referências

CARRILLO, I. & IPSEN A. Worksites as Sacrifice Zones: Structural Precarity and Covid-19 in U.S. Meatpacking. Sociological Perspectives 1 2021.

KEN, I. & LEÓN, K. Necropolitical Governance and State-Corporate Harms: Covid-19 and the U.S. Pork Packing Industry. Journal of White Collar and Corporate Crime, 2021.

Allan de Campos Silva é geógrafo, tradutor e professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial no Caribe e América Latina (TerritoriAL/Unesp).

FonteLe Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 17/11/2022

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/jbs-nos-eua-no-rastro-do-trabalho-infantil/