É preciso recuperar o protagonismo do Estado, os ganhos reais dos salários e direitos trabalhistas. E superar tabu: a disciplina fiscal dos mercados.

Paulo Kliass

Acampanha eleitoral de Lula representou de forma bastante fiel o sentimento da maioria da população brasileira quanto ao governo Bolsonaro e sua natureza fascista. Em especial, foi essencial a construção desta ampla frente democrática no segundo turno para impedir a continuidade desta aventura golpista da extrema-direita por mais quatro anos em nosso país. Não havia outra liderança política capaz de dar cabo de tal tarefa, aglutinando em torno de sua candidatura o apoio de figuras como Guilherme Boulos e Fernando Henrique Cardoso, Marina Silva e Simone Tebet, José Sarney e Flávio Dino, Armínio Fraga e Luiz Belluzzo, Geraldo Alckmin e Renan Calheiros, Amoedo e Roberto Freire, para citar apenas algumas.

As primeiras etapas da longa caminhada têm sido bem exitosas até o presente momento. Foi possível o registro da candidatura junto ao Justiça Eleitoral após o reconhecimento tardio pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da injustiça e da ilegalidade cometidas pelo ex-juiz Sérgio Moro, para impedir Lula de concorrer em 2018. Em seguida, a formação da chapa “Brasil pela Esperança” com Geraldo Alckmin na vice-presidência e a participação de nove partidos apoiando a iniciativa desde o início. A vitória em 2 de outubro e os riscos envolvidos na disputa do segundo turno despertaram a consciência de forma ampla no interior das diferentes correntes de opinião em nossa sociedade e a confirmação da maioria obtida em 30 de outubro consolidaram alguns desafios e abriram a via para o fim do pesadelo a partir de início janeiro próximo.

No entanto, as dificuldades para Lula apresentar resultados positivos logo no início de seu novo governo continuam presentes, agravadas pela postura golpista e criminosa do derrotado nas urnas. A construção da equipe do futuro governo é uma tarefa que exige bastante habilidade e capacidade de articulação, atributos que não faltam a Lula, felizmente. Como ele mesmo tem afirmado, seu time deverá ser o retrato das forças e personalidades que estiveram com ele para viabilizar a vitória eleitoral. A elaboração dos principais pontos de seu programa de governo já vem sendo preparada e a coordenação deverá contar, neste terceiro mandato, com um olhar e presença mais próximos por parte do Chefe do Executivo. O quadro a ser enfrentado pelo futuro governo será, com toda a certeza, bem mais crítico do que aquele vivido durante a transição entre 2002 e 2003.

Vários desafios já foram superados

Talvez um dos maiores desafios seja mesmo, como costuma acontecer, a questão do nó da economia. O Brasil está enfrentando uma crise de múltiplas dimensões e a busca de soluções exige algum tipo de construção de consenso a respeito do diagnóstico e dos instrumentos a serem utilizados para tanto. Ocorre que a necessidade da ampliação da frente democrática traz consigo a pluralidade de visões a respeito do debate econômico e das possíveis soluções. Economistas de diversas tendências estão com Lula até o momento, mas percebe-se o aflorar de disputas internas no que diz respeito aos rumos a serem tomados pelo futuro governo. É compreensível que lideranças mais comprometidas com uma abordagem conservadora e ortodoxa do momento atual não se sintam à vontade com a presença de outras mais próximas do campo progressista e desenvolvimentistas. E vice-versa, claro. Caberá a Lula, como ele mesmo tem dito na imagem repetida em seus pronunciamentos, atuar como o regente dessa grande orquestra.

Porém, algumas questões necessitam de uma decisão. Por exemplo, no quesito tão sensível quanto a austeridade fiscal e o teto de gastos. Lula sabe que a urgência da reconstrução nacional e a emergência das questões como a miséria e a fome exigem um volume expressivo de despesas orçamentárias extraordinárias. Como esse tipo de preocupação não fazia parte do menu de Bolsonaro e Paulo Guedes, o orçamento previsto para 2023 não contempla o volume de recursos necessários para iniciar o enfrentamento das premências das tarefas do futuro governo. Isso significa que Lula não terá como se manter fiel a qualquer compromisso com geração de superávit primário, como ele chegou a ensaiar em diversos momentos da campanha.

Os primeiros anos desse novo mandato deverão significar uma importante mudança de rota na estratégia de destruição do Estado e de desmonte das políticas públicas, tal como veio sendo levado a cabo desde o “golpeachment” de Dilma Rousseff em 2016, quando a dupla Temer e Meirelles assumiu o comando do governo. Depois de 2019 esse movimento foi ainda mais aprofundado e o esforço para restabelecer, a partir de agora, tudo o que foi destruído será hercúleo. Para tanto, o novo governo vai ser levado a aumentar os gastos e a recuperar o protagonismo do Estado na esfera da economia. Ora, essa estratégia deverá sofrer críticas das correntes mais conservadoras, que desde o início já exigiam algum tipo de compromisso público de Lula com uma agenda que agrade ao sistema financeiro e com o anúncio de nomes com esse tipo de perfil para ocupar cargos chaves nas pastas ligadas à economia.

Recuperação do protagonismo do Estado e dos bancos públicos

A participação dos bancos públicos, a exemplo do Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco da Amazônia (BASA), Banco do Nordeste (BNB) e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no desenho e na implementação de políticas de retomada do crescimento e desenvolvimento também será essencial. Ao longo dos últimos seis anos verificou-se uma redução do espaço e da participação as instituições financeiras federais na concessão de crédito em geral, e em especial para projetos de maior dimensão e prazo mais longo. Recorrendo ao discurso contra um suposto “gigantismo do Estado”, Meirelles e Guedes patrocinaram um severo encolhimento das capacidades estatais, inclusive na oferta de crédito em setores estratégicos. A necessária retomada da utilização de tais instituições também deverá contar com alguma resistência do financismo, que não aceitará facilmente uma eventual volta da concorrência dos bancos federais e nem tampouco o retorno das condições de empréstimo com juros subsidiados.

Existe um amplo consenso dentre as correntes da economia no que diz respeito à importância do chamado “multiplicador de gastos” do setor público como estímulo para acelerar a retomada do crescimento das atividades econômicas de forma geral. No entanto, as elites brasileiras apresentam forte resistência a incorporar essa quase unanimidade em seu cardápio. Não trouxeram para nossa realidade a mudança de atitude que se verificou nos países desenvolvidos e também no interior das organizações multilaterais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM). A experiência da crise financeira de 2008/9 e a mais recente da covid em 2020 abriram espaço para uma espécie de flexibilização dos dogmas da austeridade fiscal, ao reconhecerem a importância de se aumentarem as despesas públicas como mecanismo de atenuação dos impactos econômicos e sociais associados à redução do ritmo das atividades. Mas aqui no Brasil essa possibilidade ainda é considerada um grande tabu.

Fim da austeridade fiscal e da reforma trabalhista

Outra frente que vem sendo debatida refere-se à necessidade de revogar aspectos das reformas trabalhistas introduzidas por Temer e Bolsonaro. Lula não se esquivou a esse respeito, lembrando os efeitos sociais e econômicos provocados pela retirada de direitos dos trabalhadores e pela redução de seus rendimentos. A recessão e o elevado desemprego colaboram para diminuir a massa salarial de forma geral, mas esse movimento vem sendo reforçado pela incorporação da precariedade e da informalidade como fenômenos agora tidos como naturais e legais. Assim é necessário eliminar as mudanças mais recentes na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), para que as condições de vida dos assalariados não sejam tratadas como atualmente e para que a demanda aumentada assegure padrões de consumo que estimulem a retomada do crescimento das atividades da economia. Assim, por exemplo, ele insiste na retomada imediata da política de ganhos reais no salário mínimo

Enfim, o novo desafio de Lula é imenso. Apesar de sua preocupação em manter a necessária unidade da ampla frente que construiu para sua vitória, o presidente eleito tem plena consciência de que determinadas questões do seu plano de governo podem provocar alguma divergência e não terá como agradar a todas as correntes que estão com ele. Algumas diferenças podem ser acomodadas por meio da distribuição de espaços no interior do governo, onde a diversidade de opiniões e agendas deve se ver contemplada. No entanto, outras orientações são mais gerais e sobre elas não existe espaço para contemporizar, a exemplo da austeridade fiscal e da legislação trabalhista.

O Brasil tem urgência para construir 40 anos em 4. O início imediato do trabalho da transição de governo, por mais que tente ser boicotada pelo bolsonarismo, poderá facilitar a tomada de consciência da real situação da administração pública federal. E Lula poderá se valer justamente dessa emergência incontornável para convencer seus aliados mais conservadores a respeito de sua agenda que exige flexibilização no rigor do fiscalismo e recuo no endurecimento recente na legislação do trabalho.

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 03/11/2022

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/austeridade-a-barreira-a-vencer/