Cada vez mais, as crianças – em casa –, os alunos – na escola – e os funcionários – no trabalho – demonstram falta de foco. Não prestam atenção. Não entendem o que é perguntado. E em grande número demonstram pouco interesse e esforço para fazê-lo.

O fenômeno não é recente, mas não é totalmente novo. Nem é fruto da pandemia. Em excepcional estudo sobre o tema, o neurocientista francês Desmurget analisou centenas de estudos e, com base no que encontrou, alertou os pais e educadores sobre as causas e consequências perversas dessa situação. Segundo ele, esse novo fenômeno se deve, em grande parte, ao crescente uso de telinhas e celulares. A pandemia do coronavírus parece ter acentuado essa tendência. Mas esse é apenas um capítulo a mais de uma longa novela. Está ficando mais difícil aprender e ensinar.

O que fazer? Entregar as armas?

Nas duas últimas semanas, o New York Times publicou um artigo a respeito da demissão do professor Maitland Jones Jr. A essa publicação, se seguiram duas outras, o que mostra o interesse suscitado pelo tema, o qual, aliás, é de interesse geral, inclusive nosso – no Brasil do aqui e do agora –, pois tem a ver com mudanças que afetam o funcionamento do cérebro das pessoas. Mas, sobretudo, tem a ver com mudanças a respeito das regras de funcionamento das instituições acadêmicas e colocam na berlinda seus valores mais fundamentais.

Vamos aos fatos. Jones fez brilhante carreira acadêmica. Foi professor de Química Orgânica na Universidade de Princeton, que dispensa apresentação. Publicou um dos mais influentes livros-textos dessa disciplina – um calhamaço de 1.300 páginas. Inovou no ensino da disciplina ao propor o uso do raciocínio e da solução de problemas no lugar da decoreba.

Depois de aposentado, dedicou-se exclusivamente ao ensino e lecionou por mais de 10 anos como professor contratado num departamento da NYU, que oferece cursos cuja nota final serve de sinalização para ingresso dos alunos nas melhores faculdades de Medicina daquele país.

Jones foi demitido. A causa: um abaixo-assinado de um grupo de 82 de seus 350 alunos, reclamando do rigor de suas provas. Tímidos protestos de seus colegas não demoveram os burocratas de plantão de sua decisão.

Um detalhe: Química Orgânica é disciplina básica para ingressar nas melhores escolas de Medicina, para exercer a profissão e nela progredir ao longo da vida. E notas altas nesses cursos constitui um importante preditor de sucesso. Outro detalhe: trata-se de seleção para um curso extremamente caro, quase sempre custeado pela família dos alunos e que leva a uma profissão extremamente bem-paga. E tem mais: decorar exige boa memória e esforço, mas compreender exige esforço e talento. Notas boas em testes de decoreba não constituem credenciais robustas para carreiras que lidam com questões de vida ou morte.

Num segundo artigo sobre o fato, publicado em 5 de outubro, a socióloga Tressie McMillan Cottom tenta minimizar o fato apelando para uma justificativa corporativista: Jones tinha um cargo de professor contratado, não era mais um professor efetivo. Sua demissão revelaria apenas o baixo status desse tipo de professor – não um descrédito da meritocracia e da autoridade do professor que, segundo ela, permanece intocado. É argumento do tipo “professores horistas unidos jamais serão vencidos” …

O outro artigo, da também socióloga Jessica Calarco, ofereceu uma explicação baseada em seus estudos sobre a luta social da classe média para se manter na estrutura competitiva das universidades. Para ela, a demissão é sinal do poder crescente dos estudantes e famílias sobre as decisões da universidade. Esse poder é acrescido, segundo ela, da diversidade crescente dos alunos e, consequentemente, da contestação de sólidos conceitos meritocráticos. Um desses conceitos reside em usar notas dos alunos em cursos básicos como estratégia de identificar quem entra nas melhores escolas de Medicina. Ou seja, tem um lado e outro lado. E outro lado. E cada vez mais outros lados. O final da peça é conhecido: os internos, com apoio dos funcionários, acabam demitindo o diretor do manicômio…

Nos dias que correm, o tema da meritocracia – como qualquer outro que tangencie a questão das diferenças – é “polêmico”. Meritocracia evoca privilégio, discriminação e, portanto, desigualdade. É do mal. Diversidade evoca equidade. É do bem. Por definição.

O final dessa história é conhecido – uma vez feito um buraquinho no dique, o estouro da represa é questão de tempo. O que era represa pode causar uma catástrofe. O conceito de pós-moderno sinaliza exatamente isso: o chamado “mundo moderno” fundado nos princípios da chamada “civilização ocidental” acabou. O dique está ruindo. Nova sociedade, novos critérios, novas formas de convivência. Os sedimentos da antiga represa e os novos terrenos alagados servirão de base para a nova civilização. Sempre foi assim, não há nada de novo debaixo do sol.

Há problemas com o conceito de igualdade, como há problemas com o conceito de meritocracia. Mas sabemos que não apenas a meritocracia, mas a quantidade e qualidade do talento de uma sociedade estão fortemente associados ao seu nível de desenvolvimento econômico e, segundo alguns, à predominância de valores democráticos. Há incontáveis vantagens e virtudes associadas ao conceito de mérito e à busca de excelência.

Mas também há problemas graves com o conceito de diversidade. No curto e no médio prazo, as instituições estarão sujeitas a ventos e trovoadas, com muita turbulência. Os pilares da vida acadêmica estão solapados. Será necessário reinventar novas formas de convívio institucional para produzir qualidade. O que sabemos hoje sugere que os riscos de perda de qualidade, no curto prazo, e suas consequências são gigantescos, a longo prazo. No entanto, tudo indica que são inevitáveis – o processo já foi iniciado há, pelo menos, dois séculos e reconhecido com clareza há décadas – cito apenas Dostoiévski, Tolstói e C.S. Lewis ou Richard Weaver como alguns dos observadores mais atentos. E pensar que ainda estamos começando o desmonte dos pilares que sustentaram as bases da nossa civilização. Parte da vida, sempre foi assim.

No curto prazo, uma boa forma de não se perder totalmente no debate sobre meritocracia é analisar situações concretas, como na hora de entrar no avião ou na sala de cirurgia. Que critérios você considera mais relevantes para escolher seu piloto ou seu cirurgião?

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AUTORIA

Joao Batista Oliveira

JOAO BATISTA OLIVEIRA Presidente do Instituto Alfa e Beto e cofundador da Iniciativa Base10, João Batista Oliveira é psicólogo e doutor em Educação pela Universidade do Estado da Flórida. Fez pós-doutorado na Universidade de Stanford e atuou como professor, entre outras instituições, na UFMG e na UFRJ.

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