O Direito do Trabalho só pode reconsiderar seus institutos básicos quando a emancipação do trabalhador for uma realidade e não apenas uma promessa.

Igor de Oliveira Zwicker

FonteConjur
Data original da publicação: 13/05/2022

Na ADPF nº 324 [1], um dos muitos processos julgados pelo Supremo Tribunal Federal sobre a prática da terceirização, arguição esta relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso, a Suprema Corte fixou a seguinte tese:

“1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada.
2. Na terceirização, compete à contratante: 1) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e 2) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993″.

Uma das razões de decidir de sua excelência, o ministro Barroso, foi um agradável bate-papo com um empregado terceirizado do aeroporto de Guarulhos. Isso consta expressamente no próprio voto, à disposição no sítio do Supremo Tribunal Federal, cujo trecho transcrevo a seguir, ipsis litteris:

“Eu estive recentemente no aeroporto de Guarulhos, um funcionário me atendeu e me contou a vida dele, e disse: ‘Eu trabalhava para a empresa tal, que passou por uma crise financeira. Eu tive sorte e fui contratado por uma empresa terceirizada do aeroporto. E agora a minha antiga empresa está em dificuldade, mas eu presto serviço a diferentes empresas. E, portanto, para mim, foi melhor estar numa terceirizada e poder circular em diferentes empresas do que ter permanecido na minha empresa antiga e ter sido demitido. Agora eu estaria sem emprego algum’. Portanto, acho que esta lógica de que a terceirização vai prejudicar a empregabilidade é uma lógica que não tem sustentação econômica”.

Porém, essa é, literalmente, a lógica perversa da precarização. Lembra-me o caso dos anões na França, um dos mais paradigmáticos julgamentos da história em relação a direitos humanos.

Uma boate de Paris contratava anões, cujo trabalho consistia em se colocarem à disposição dos clientes da casa em uma competição na qual eram lançados, vencendo o cliente que lançasse o anão o mais longe.

O prefeito da cidade proibiu a prática, mas os próprios anões queriam, afinal, proibida a prática, eles perderiam o emprego.

O caso chegou ao Conselho de Estado Francês, que chancelou a decisão da Prefeitura e desautorizou a prática. Para o Conselho, se o emprego viola a dignidade da pessoa humana, cabe ao Estado interceder em prol da proibição da prática.

Veja-se que hoje esse é o discurso predominante: antes terceirizado do que desempregado; antes trabalhador intermitente do que desempregado; antes trabalhador “autônomo” por aplicativo do que desempregado; antes a Reforma Trabalhista do que o desemprego; antes a retirada de direitos do que o desemprego; antes a desregulamentação e a flexibilização do que o desemprego.

A decisão foi ratificada, enfim, pela própria Organização das Nações Unidas.

Se o Estado brasileiro permitir essa lógica precarizante, há quem venderá a sua dignidade por um prato de comida.

Teresa Negreiros [2], uma civilista, ao tratar da teoria dos contratos, adverte que “contratos que versem sobre a aquisição ou a utilização de bens que, considerando sua destinação, são tidos como essenciais estão sujeitos a um regime tutelar, justificado pela necessidade de proteção”.

O Direito do Trabalho é protetivo em razão da hipossuficiência do empregado, cujo contrato de trabalho tem como objeto seu meio de existência digna — o salário, capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e da sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, na forma do artigo 7º, inciso IV, da Constituição da República — o que fundamenta, inclusive, a legitimação da intervenção estatal na autonomia da vontade — na intervenção estatal, por certo, inclui-se o Estado-Juiz, na forma do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República.

Nosso ordenamento jusconstitucional, em verdade, não só não permite como veda, expressamente, qualquer pretensão precarizante e opressora do capital.

Segundo a Constituição da Organização Internacional do Trabalho, trabalho não é mercadoria.

Segundo o artigo 1º, inciso IV, da Constituição da República, nosso Estado democrático de Direito tem como fundamentos os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Quando se diz “e da livre iniciativa”, e não “a livre iniciativa”, diz-se claramente que também a livre iniciativa deve revestir-se de valores sociais.

A ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho humano e deve assegurar existência digna, conforme os ditames da justiça social, observada a função social da propriedade, da empresa e dos contratos (artigo 170, caput e inciso III, da Constituição da República).

O artigo 7º, caput, da Constituição da República, ao dispor sobre direitos mínimos além de outros que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores, dispõe não apenas sobre a norma-princípio da vedação ao retrocesso social, mas, ainda, sobre uma cláusula de avanço permanente social, assim como dispõe o artigo 2º, §1º, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, este último, segundo o Supremo Tribunal Federal, com posição hierárquico-normativa de supralegalidade e potencial de opor eficácia paralisante a toda e qualquer legislação infraconstitucional que o contradiga.

O Direito do Trabalho é ideológico — no sentido de ser protetivo ao empregado — e tem razão de ser. O empregado é a parte vulnerável, é hipossuficiente. A maioria das pessoas — o que inclui o patronato, os empresários, aqueles que contratam pessoas humanas — não se insurge contra a lógica protetiva do Direito do Consumidor, muito pelo contrário; todos querem ser protegidos em suas demandas consumeristas contra grandes empresas e conglomerados. Porém, inconformam-se com a proteção conferida aos trabalhadores.

Daí, chegaríamos a uma lógica do absurdo (uma distopia, arrisco-me dizer): aquele que compra uma caneta BIC que não risca teria mais direito à proteção do que alguém que coloca a sua vida, o seu tempo existencial e a sua força de trabalho em favor de outrem.

É preciso saber diferenciar. O protecionismo existe, tem que existir. Não se concebe que o ordenamento jusconstitucional proteja o consumidor hipossuficiente que comprou uma caneta que não risca e se viu lesado, mas não se proteja um trabalhador que, em troca de dinheiro, coloque sua vida, seu tempo, seu vigor físico a serviço de outrem para sobreviver.

O que não pode existir é o paternalismo. Mas o protecionismo, esse deve existir, sempre. E arrisco-me a dizer, mais um pouco: a Constituição da República — o Poder Constituinte Originário, ilimitado, infenso a controle de constitucionalidade, como já reconheceu inúmeras vezes o Supremo Tribunal Federal — não dispôs uma competência específica, em favor de juízes especializados. Assim o fez porque quis ver formados magistrados sensíveis, que tenham aptidão para enxergar o abismo existente entre o capital e o trabalho, cada vez mais largo.

O Direito do Trabalho só pode reconsiderar seus institutos básicos quando a emancipação do trabalhador for uma realidade e não apenas uma promessa. Enquanto o mundo se apresente com desigualdades profundas e o homem, lobo do homem, as urgências que determinaram o nascimento do Direito do Trabalho permanecem e persistem informadas pelos mesmos princípios básicos protetivos [3].

Notas

[1] ADPF 324, relator (a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-194 DIVULG 05-09-2019 PUBLIC 06-09-2019.[2] NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 463.[3] COSTA, Orlando Teixeira da. Os novos princípios do direito coletivo do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da Oitava Região, Belém, PA, v. 19, n. 37, p. 7-12, jul./dez. 1986. Adaptado.

Igor de Oliveira Zwicker é doutor em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará); mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (PA); especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UCAM (RJ) e em Gestão de Serviços Públicos pela Unama (PA).

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/o-stf-o-caso-dos-anoes-na-franca-e-o-retrocesso-social-brasileiro/