GARANTIAS DO CONSUMO
O governo federal está em vias de publicar medidas provisórias que modificarão estrutural e funcionalmente a disciplina das garantias reais. Duas eventuais propostas altamente inovadoras serão introduzidas no mundo jurídico: a primeira tem por escopo criar o "título de propriedade imobiliária" (TPI), nova figura que assegurará negociações mais rápidas com a interessante qualidade de representação cartular do imóvel de propriedade do devedor (pessoa natural); e a segunda, que objetiva fundar as Instituições Gestoras de Garantias (IGG).
Na base, as propostas partem do Ministério da Economia, com aval em discussões realizadas pelo Banco Central e demais integrantes da Iniciativa de Mercado de Capitais. Há a expectativa do mercado de que o "home equity" (empréstimo de pessoa natural garantido pelo imóvel residencial)[1] aumentará a segurança jurídica das instituições financeiras para o fornecimento de créditos aos consumidores, o que possibilitará, via de consequência, a redução de juros no setor financeiro e imobiliário.
Do ponto de vista dos estudiosos do direito do consumidor há séria preocupação com a inserção de referidas medidas provisórias que podem ser nocivas aos núcleos familiares e aos devedores pessoas naturais, especialmente no agravamento às situações de superendividamento.
É extremamente inquietante verificar a "facilidade" com que o domínio econômico trata os institutos jurídicos, adornando-os aos seus objetivos e descurando-se da ciência jurídica que, por si só, é "sistema de limites"[2] aos eventuais abusos próprios dos grandes poderes, entre eles o Estado e o mercado. O "título de propriedade imobiliária" (TIP), caso seja adotado em medida provisória, estrangulará o conceito e os elementos da propriedade há tempos consolidados na legalidade constitucional e no Código Civil (artigos 1.228 e seguintes), e, especialmente, obstará a requalificação humanitária introduzida pela Lei 14.181/21 no que respeita a promoção ao mínimo existencial.
Na hipótese, o TIP concretamente caracterizará a propriedade imobiliária, tornando-se título totalmente negociável no mercado, diminuindo a proteção do devedor-proprietário, sem que haja maiores e necessários cuidados com inúmeros direitos fundamentais inerentes, especialmente: moradia, habitação, meio ambiente e o próprio direito fundamental à propriedade.
A leitura do texto em proposição do TPI permite verificar o óbvio sentido de "‘transferência de riscos" dos agentes de créditos aos devedores-consumidores, retirando alicerces legais construídos secularmente pelo sistema jurídico na proteção do proprietário e da propriedade, já que nada propõe em matéria de direitos relativos à excussão judicial, bem como devido processo legal. Aliás, o conteúdo do texto a ser guindado como Medida Provisória é claramente contrário ao parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil que reconhece a matéria como de ordem pública, considerando a função social da propriedade, o que também está sedimentando no artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal.
Igualmente do texto em proposição transparece claramente a possibilidade do TPI ser negociado e controlado por quem tem mais de 50% da titularidade, inclusive grupos de detentores, que poderão decidir pela venda do bem, independentemente da vontade, aquiescência, defesa ou anuência do proprietário. A própria exclusividade, característica marcante do direito de propriedade, desde as codificações do século 19, é retirada do berço a fórceps, como se já não bastasse a ficção de propriedade decorrente da alienação fiduciária em garantia sobre bens imóveis. Enfim, a eventual MP faz ouvidos moucos à sólida construção pretoriana de bens de família, mínimo existencial, indisponibilidade das titularidades de bens essenciais.
Diante deste "terrível direito" (Stefano Rodotà), não é possível se liberar dos problemas postos daquilo que se indica como lógica proprietária, modelo dominativo, "máquina" proprietária, princípio proprietário, ou como se queira chamá-lo. [3]
Igualmente vocacionado à Medida Provisória, o texto quanto à formulação das Instituições Gestoras de Garantias é de causar espécie. O nó central é permitir serviços de gestão especializadas em gravames diretamente à iniciativa privada, com o objetivo atuarem na facilitação de constituição ou "compartilhamento" de garantias, quando será longa manus das instituições financeiras.
Vê-se sistema paralelo ao serviço já reconhecido e realizado pelos Cartórios de Registro de Imóveis e Caixa Econômica Federal, afastando por completo o Estado no dever de proteção dos devedores. Economicamente, sobre o imóvel haverá a obtusa oportunidade de mais de um gravame como garantia de empréstimos, o que degringola completamente a noção da propriedade já construída e consolidada no direito interno como "paradigma da essencialidade"[4] ou também no direito comparado pela aproximação aos "bens fundamentais".[5]
Como se sabe, é prudente proceder a aplicação das regras dos direitos reais de garantia à luz da propriedade como direito fundamental e respectiva função social (CF, artigo 5º, caput e incisos XXII e XXIII). Trata-se da coordenação entre a segurança da "propriedade-garantia" e a fundamentabilidade da "propriedade-acesso".
Pois bem. Por isso, é dever situá-la tanto entre os direitos individuais do proprietário (próprio) como nos interesses coletivos da comunidade (comum). E dessa forma se a propriedade (enquanto direito real) tem aproveitamento econômico, igualmente (enquanto espaço para o livre desenvolvimento da pessoa humana) tem aproveitamento na proteção do mínimo existencial pela Lei 14.181/21, tal qual a orientação francesa "restre à vivre", que agora se soma à indisponibilidade do bem de família.[6]
Ademais pela teoria geral do direito (especialmente do direito privado) essa matéria deve estar atrelada a densos princípios — como: função social (da propriedade, da posse e da cidade); boa-fé (mais especificamente a vedação de exercício inadmissível de posição jurídica); defesa do consumidor (ordem econômica inclusiva e direito fundamental, CF, artigo 5º, inciso XXXII); defesa do meio ambiente (função socioambiental intergeracional, poluidor-pagador, prevenção e precaução); produtividade (natureza agrária) — que informam, preenchem lacunas e têm ampla força deontológica no auxílio e aplicação dos direitos reais de garantia.
As relações econômicas e de mercado não podem suprimir a promoção do consumidor (sujeito constitucional) também no campo da propriedade. O fenômeno da transformação da propriedade em objeto disponível e reproduzível, como bem lembrado por Pietro Barcellona acaba verticalizando sobre o titular do direito, transformando-o igualmente: "es decir, el sistema funciona como productor, reproductor y destructor de objetos destinados a la apropriación y, al final de su 'ciclo final', nos devuelve un sujeto em relación con el objeto consumible (que constituye el suporte del sistema). El sujeto propietario es transformado em sujeto consumidor".[7]
Os textos das duas medidas provisórias traduzem justamente os danos ocorridos na crise estadunidense de 2008 (a famosa bolha imobiliária), quando o instituto do "home equity" foi utilizado sem margem de proteção dos consumidores, aliás, ao contrário, com riscos transferidos. Isso se deu com enorme irresponsabilidade, porquanto se as normas protetivas eram aplicadas para as demais espécies de garantias (Equity Protection Act — hoepa rules), no "home equity" nenhuma proteção era possível.[8]
Num ponto como tal e se prudentemente lembrarmos que no Brasil já existem, segundo a Confederação Nacional do Comércio, setenta milhões de famílias endividadas e outras trinta e cinco milhões de famílias superendividadas, logo teremos centenas de milhões de "famílias expropriadas". Estamos a um passo de milhões de pessoas expostas à situação de rua, somente para atender a um insaciável anseio do mercado, inadmissível num país de vulneráveis.
O legislador brasileiro está vinculado aos deveres de proteção dos direitos fundamentais, o que é a hipótese do direito do consumidor (CF, artigo 5º, inciso XXXII), cabendo nestas proposições aqui analisadas retirar dos textos expressamente "as relações de consumo" e os "consumidores".
[1] Modalidade prevista na Circular da Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil n. 3.747, de 27.02.2015 – D.O.U.: 03.03.2015.
[2] Ruggiero, Roberto de. Instituições de direito civil. v. 1. São Paulo: Livraria Acadêmica. Saraiva, 1934, p. 24. Na famosa passagem com apoio em Kant e Krause, quando conceitua o Direito: “Kant, pelo contrário, parte do princípio da liberdade e do princípio da condicionalidade, definindo-o como ‘o conjunto de condições mercê das quais o arbítrio de cada um pode ser compatível com o arbítrio dos outros, segundo uma lei universal de liberdade’; e Krause, acentuando ainda mais a idea de condicionalidade, define-o como ‘a totalidade das condições dependentes da liberdade para realização dos próprios fins’. Donde se conclui que o direito é um sistema de limites”.
[3] RODOTÀ, Stefano. Il terribile diritto; studi sulla proprietà privata e i beni comuni. 3.ed. Bologna: il Mulino, 2013. p.448.
[4] NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato. Novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 379.
[5] FERRAJOLI, Luigi. Por uma carta dos bens fundamentais. In: Periodicos UFSC. br/index. php/sequencia/article/view/2177-7055.201, acesso em 11-10-21.
[6]MARQUES, Claudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito de consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. RDC. v. 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 11-52. Antes da Lei 14.181/21 tínhamos apenas a seguinte abordagem: “O mínimo existencial deve ser preservado na França (restre à vivre da alínea 2 de l'article L.331-2 du Code de la Consommation), no Brasil, conhecemos apenas o bem de família).
[7] BARCELLONA, Pietro. El individualismo propietario. Madrid: Trotta, 1996. p. 91.
[8] Nehf, James P. Preventing another financial crisis: the critical role of consumer protection laws. In: RDC. v. 89. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29-40. Da tradução livre: “Como exemplos de leis de proteção ao consumidor antes da crise, em nível federal, a Lei de Propriedade de Casa e Proteção Patrimonial (Hoepa) dá aos consumidores em muitas transações de hipotecas o direito de cancelar pagamentos proibidos, exige que os credores considerem a capacidade de reembolso do devedor, e proibiu a amortização negativa (com perda de patrimônio) e penalidades de pré-pagamento. No entanto, Hoepa não era aplicável a uma hipoteca de dinheiro de compra inicial (apenas refinanciamentos de hipotecas existentes), e não era aplicável a linhas de crédito abertas (linhas tradicionais de home equity)”.
Fernando Rodrigues Martins é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon (2021-2023).
Guilherme Magalhães Martins é promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – Rio de Janeiro, professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor permanente do Programa de Doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense, doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ, segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.
Claudia Lima Marques é professora e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS, doutora pela Universidade de Heidelberg, mestre em Direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha), advogada, relatora-geral da comissão de juristas e ex-presidente do Brasilcon.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2021-out-13/garantias-consumo-home-equity-bolha-imobiliaria-brasileira