PRESERVAÇÃO DA ECONOMIA

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Na esteira da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), a "lava jato" puniu rigorosamente empresas acusadas de participar de esquemas ilegais com a Petrobras. Diferentemente do que ocorre em outros países, porém, não houve uma preocupação tão grande em preservar as companhias e suas atividades, afirma Vinicius Marques de Carvalho, ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Como exemplo, ele cita o caso da alemã Siemens, que foi acusada de praticar corrupção em diversos países. A companhia pagou as multas que deveria, mas manteve sua atuação — e os executivos responsáveis pelos crimes foram punidos. Já no Brasil, diversas empresas envolvidas na "lava jato" tiveram seu funcionamento minado e pediram recuperação judicial, como Odebrecht e OAS. Porém, Carvalho acredita que as autoridades brasileiras estão chegando a um equilíbrio entre a punição e a preservação das atividades de companhias.

"É preciso criar uma estrutura de incentivos, porque, no fim, quem age de maneira corrupta usando a empresa, muitas vezes, são seus funcionários, seus executivos. A empresa acaba sendo um instrumento. Então é importante que se consiga atingir patrimônios das pessoas que, de fato, são as responsáveis pelo problema. Penso que estamos caminhando nessa direção, mas com muitas dificuldades nesse processo", avalia Carvalho, que é sócio do VMCA Advogados e professor de Direito Comercial da Universidade de São Paulo.

Ainda sobre a "lava jato", Vinicius Marques de Carvalho diz que o que motivou a aprovação da Lei Anticorrupção foi um discurso para atingir as empresas envolvidas nesse tipo de crime. "Tanto que a Lei Anticorrupção não trata de pessoas físicas. O juiz Sergio Moro fez acordo de leniência com pessoas físicas fazendo analogia com a Lei do Cade (Lei 12.529/2011), o que é uma coisa esdrúxula do ponto de vista jurídico formal. Não se pode fazer analogia para punir. A Lei Anticorrupção pune empresas", afirmou.

O advogado entende que a criação de um "balcão único" para acordos de leniência, envolvendo diversos órgãos públicos, pode ser uma boa medida. Mas desde que siga o padrão das instituições mais avançadas na matéria, como o Cade, que tem uma série de regras e padrões para a celebração desses termos. Caso contrário, o "balcão único" pode ficar nivelado por baixo, opina.

Em entrevista à ConJur, Vinicius Marques de Carvalho também defendeu a ampliação do debate sobre política concorrencial no Brasil e explicou os principais pontos da nova política antitruste dos EUA, que está deixando de se preocupar apenas com o bem-estar do consumidor e passando a considerar a concorrência como um "processo", de modo a contemplar também, por exemplo, trabalhadores e pequenos competidores.

Leia a entrevista:

ConJur — O Cade analisa fusões e aquisições, mas não existe no Brasil um debate mais amplo sobre política concorrencial. Como mudar isso?
Vinicius Marques de Carvalho —
 A sensação que eu tenho é que a discussão sobre concorrência no Brasil sempre ficou muito atrelada ao Cade. Então, sempre se leu a questão concorrencial como um debate sobre o que fazer na análise de fusões de empresas, o que fazer quando se têm condutas empresariais que podem ou não ser vistas como anticompetitivas. Fora disso, a discussão da concorrência sempre ficou muito ligada a um debate desregulatório, no sentido de que introduzir concorrência é introduzir livre mercado. Essa é a agenda hoje, por exemplo, da Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência. É uma agenda de coletar informações e normas de diversas áreas para poder identificar normas que geram peso desproporcional à livre concorrência e ao livre mercado. E aí, portanto, é preciso desregulamentar. Porém, na verdade, é uma discussão que envolve também um debate sobre eventualmente estruturar uma regulação econômica para criar um tipo de concorrência. Então, por exemplo, a Lei do Serviço de Acesso Condicionado (Lei 12.485/2011) cria uma regra de não integração do setor, ou de limite à integração vertical do setor de comunicação audiovisual. É uma regulação tipicamente concorrencial, que estabelece um padrão competitivo de como os players devem concorrer no setor. E não necessariamente uma regulamentação baseada na ideia de que é preciso simplesmente deixar as coisas acontecerem, desregular. Outro exemplo: a regulação baseada em uma proteção de informação para o consumidor final, de fidelidade às bandeiras no mercado de combustíveis, que os postos de uma determinada bandeira têm que só oferecer combustível daquela bandeira, é uma regulamentação também de uma linha informacional, que tem um objetivo de fundo econômico, de dar transparência para o consumidor daquilo que ele está consumindo. Essas regulações podem também ser vistas de uma perspectiva concorrencial, como indutoras de um tipo de concorrência, de um modelo concorrencial no setor. E esse debate nós acabamos não tendo, porque não colocamos esse debate dentro de uma discussão concorrencial. Nós colocamos esse debate de uma maneira como se simplesmente a política concorrencial fora do Cade fosse uma política de livre mercado e ponto final. E não é necessariamente assim.

ConJur — Como o senhor avalia a atuação do Cade com relação a acordos de leniência?
Carvalho —
 A história do Cade em relação aos acordos de leniência é uma história de sucesso. Ao longo do tempo, vários acordos foram assinados. Isso se deve, em um primeiro momento, à estruturação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Depois, o Cade já reestruturado conseguiu ler o cenário mundial da política de defesa da concorrência e se atrelou de maneira exitosa ao movimento que existia de combate a cartéis internacionais. A grande dúvida era se nós iríamos conseguir fazer acordos de leniência sobre cartéis existentes no Brasil, e não apenas pegar carona nos cartéis internacionais. Isso era uma dúvida importante, que o Cade conseguiu superar, fez acordos de leniência em casos de cartéis relevantes no Brasil e sustentou, ao mesmo tempo, uma estratégia de combate a cartéis que não dependesse dos acordos de leniência.

Mas é importante lembrar que uma política de leniência exitosa é também uma política de combate a cartéis que não dependa de acordos de leniência. Como incentivar empresas que participam de cartéis a fazer acordos de leniência se elas pensarem que não têm risco de ser punidas ou de ser pegas? Isso é ponto que deve ser prioritário. Aí tem uma questão interessante. A política de leniência no Cade sempre foi uma política em que se assinavam acordos de leniência com base no histórico da conduta e na quantidade de documentos que embasasse a abertura de um caso ou que, pelo menos, justificasse, por exemplo, o pedido judicial de uma busca e apreensão. Os acordos não eram firmados só com base em alguém chegando e contando história. Isso é um ativo do Cade na negociação de acordos de leniência que tem que ser sempre preservado.

Outro ponto importante é que se tenham investigações. E isso também está conectado a uma ideia de que, como o mundo está virando os holofotes para as discussões de tecnologia, que normalmente são associadas a questões de condutas verticais ou de condutas unilaterais, é importante entender que, embora esse debate seja relevante, não é que não tem mais cartel no mundo.

Uma política antitruste tem que ser equilibrada no tripé atos de concentração, condutas unilaterais e combate a cartéis. O Cade tem tentado efetivar esse equilíbrio. Por volta de 2013, nós conseguimos equilibrar, com a nova lei (Lei 12.529/2011). Antes da nova lei, 92% do que o Cade julgava era ato de concentração. Depois isso foi sendo equilibrado ao longo do tempo entre ato de concentração e condutas que infringem a ordem econômica. Aí se iniciou uma preocupação dentro de condutas, com condutas unilaterais. Então é preciso ir buscando esse equilíbrio.

ConJur — Como avalia a criação do "balcão único" de acordos de leniência?
Carvalho —
 A ideia do "balcão único", em tese, não é ruim. É uma boa ideia. Mas, para ser implementada, é importante que os órgãos que estejam mais avançados em suas políticas de leniência não tenham que diminuir o nível para se adequar aos demais. É preciso nivelar por cima. E nivelar pelo Cade é nivelar por cima. É um órgão que tem regras claras, guias, resoluções. Tem um padrão de indícios ou provas que é utilizado como mínimo necessário para começar a conversar com as empresas sobre acordo de leniência. Não é algo que existe só para resolver uma investigação que já está na praça, é algo que existe para descobrir condutas ilícitas. Na discussão sobre um balcão único, esses pontos têm que ser levados em consideração. E de fato tem que ser um balcão único de cooperação, e não de algum órgão tomando a liderança e dizendo que o caso está com ele enquanto instrumentaliza os outros órgãos de acordo com seu interesse investigatório. Então é preciso ser algo muito bem construído, muito bem desenhado.

ConJur — Qual é a sua expectativa para o julgamento pelo Cade dos casos envolvendo cartéis da operação "lava jato"?
Carvalho —
 Eu advogo em um desses casos, então não posso comentar. O que eu posso falar é o seguinte: o Cade tem tentado construir acordos na maioria desses casos. As empresas, até onde eu sei, têm tentado fazer esses acordos. E tem uma preocupação do Cade, como tem de outros órgãos, como tem da Controladoria-Geral da União, sobre a sustentabilidade dessas empresas. Em todos os países do mundo desenvolvido, quando escândalos como esses acontecem, não se veem empresas passando por problemas como elas passaram no Brasil. Veja a Siemens, por exemplo — tudo o que aconteceu com ela na Alemanha, em casos de corrupção envolvendo vários países e coisas desse tipo. A empresa não entrou em recuperação judicial, não foi levada quase à bancarrota. Houve ali uma preocupação em punir quem fosse responsável. Penso que estamos chegando a um equilíbrio sobre isso. É preciso criar uma estrutura de incentivos, porque, no fim, quem age de maneira corrupta usando a empresa, muitas vezes, são seus funcionários, seus executivos. A empresa acaba sendo um instrumento. Então é importante que se consiga atingir patrimônios das pessoas que, de fato, são as responsáveis pelo problema. Penso que estamos caminhando nessa direção, mas com muitas dificuldades nesse processo.

ConJur — Mais no começo da "lava jato" houve muito ímpeto de punir empresas sem a preocupação com a preservação delas?
Carvalho —
  A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que tinha como discurso atingir as empresas, tinha acabado de ser aprovada. Tanto que a Lei Anticorrupção não trata de pessoas físicas. O juiz Sergio Moro fez acordo de leniência com pessoas físicas fazendo analogia com a Lei do Cade (Lei 12.529/2011), o que é uma coisa esdrúxula do ponto de vista jurídico formal. Não se pode fazer analogia para punir. A Lei Anticorrupção pune empresas. E as punições previstas na lei são muito baseadas na Lei do Cade. Aconteceu muita coisa ao mesmo tempo, o que gerou uma dificuldade para as empresas conseguirem se reorganizar. Até porque o tipo de atividades que essas empresas fazem envolve relação com o poder público. As atividades envolvendo o Estado representavam mais da metade do faturamento dessas empresas. Mas talvez tenha demorado demais a reorganização para essas companhias voltarem a participar desse mercado e firmar contratos com o poder público. E aí as empresas sangraram muito. Fora isso, nós tivemos uma crise econômica, que acabou entrando na composição do problema.

ConJur — Como os EUA estão reorganizando a política concorrencial?
Carvalho —
 Essa é a pergunta do momento. Recentemente, o presidente Joe Biden editou uma executive order que basicamente explicita algo que já vinha sendo preparado há algum tempo e que já vinha sendo identificado por todo mundo que observa a política de concorrência nos EUA. Os EUA estão tentando reorganizar a política de defesa da concorrência deles para incorporar ao método de decisão outros objetivos que não só o consumer wellfare (bem-estar do consumidor). Na lógica do bem-estar do consumidor, avalia-se se uma determinada estratégia empresarial tem algum impacto negativo em termos de preço e de qualidade para o consumidor final. Se essa estratégia empresarial gerar ganhos de produtividade para a empresa, pode-se pressupor que isso vai ser repassado para o consumidor em algum momento, porque, se não for repassado, a própria dinâmica competitiva do mercado vai fazer com que essa empresa que não repassou perca mercado. E aí garante-se, no fim do dia, o bem-estar do consumidor. Essa é a lógica que impera até hoje.

O que os EUA estão fazendo agora é se preocupar com a concorrência não só como geradora de bem-estar do consumidor, mas a concorrência como aquilo que eles chamam de "processo". Com isso, eles se preocupam com o fato de que a dinâmica competitiva tem que ser uma dinâmica aberta e com o poder de mercado eventualmente como um problema em si. Nessa lógica, há maior pessimismo em relação a essas possíveis eficiências, uma preocupação em proteger, além do consumidor, o trabalhador e os pequenos competidores. Então, há uma inserção na lógica da concorrência de outros valores que devem ser preservados.

ConJur — Como essa mudança de rota pode influenciar o resto do mundo, inclusive o Brasil?
Carvalho —
 Nos anos 1990, a política antitruste dos EUA, baseada na lógica de bem-estar do consumidor, foi exportada para o mundo inteiro, inclusive contaminando a política antitruste europeia e a criação das políticas de defesa da concorrência em vários países. Na década de 1990, havia menos de 30 autoridades de defesa da concorrência no mundo. Vinte anos depois, existem mais de 130. E muitas delas foram criadas sob influência desse modelo, que é o modelo mais fácil de se universalizar. Porque no fundo ele é baseado na teoria econômica neoclássica. Pode-se discutir se essa teoria funciona ou não funciona, se reflete a realidade ou não. Mas até por muitas vezes não refletir tanto a realidade, ela pode se universalizar como padrão normativo. E aí foi para a Europa, foi para o resto do mundo. O Brasil adotou essa lógica de decisão. Ela teve um papel muito importante, por exemplo, na criação de uma política de combate a cartéis, algo importante de ser feito. E ajudou muito na convergência, na cooperação entre as autoridades internacionais, porque as autoridades de concorrência do mundo inteiro estavam basicamente falando a mesma linguagem. A Europa, de uns anos para cá, tem voltado para uma discussão de concorrência como um processo. E agora os norte-americanos estão indo nessa direção, que acaba se conciliando com o modelo europeu.

Como essa mudança impacta o Brasil? É uma discussão interessante, porque no fundo essa ideia de política concorrencial como uma espécie de missão civilizatória, liberal, perde um pouco do atrativo na medida em que Europa e EUA falam que vão resolver os problemas deles. E eles vão olhar para a política de concorrência mais da perspectiva de política econômica do que da perspectiva de uma atuação tecnocrática na direção de uma lógica de bem-estar do consumidor, que, no fundo, não se preocuparia com questões relacionadas à distribuição de renda, por exemplo. Os EUA estão falando que há um problema de excessiva concentração de poder de mercado. De uma perspectiva da lógica da escola de Chicago, que criou a noção de bem-estar do consumidor, isso não é um problema, desde que o bolo continue crescendo. A política antitruste não tem nada a ver com isso para eles. Se há concentração de mercado, provavelmente é porque algumas empresas foram mais eficientes que outras e cresceram mais. Isso, segundo a escola de Chicago, obviamente gera ganhos de produtividade para a economia como um todo. E, para eles, se há concentração de riqueza, se o poder de mercado está sendo absorvido pelo produtor, e não pelo consumidor, esse problema tem que ser resolvido com outras políticas, e não com a política de concorrência.

O atual presidente do Cade [Alexandre Macedo], em todas as entrevistas que deu recentemente, tem ido em uma linha de dizer que vai manter a política como vinha sendo conduzida dentro dos parâmetros de bem-estar do consumidor, dentro dos parâmetros que podem ser chamados ortodoxos, e que não vai mudar. Mas temos que ver como isso vai acontecer ao longo do tempo, se EUA e Europa vão tentar influenciar as agendas concorrenciais de outros países. Eu acredito que não, mas temos que aguardar para ver.

ConJur — Como a preservação ambiental entra na política concorrencial?
Carvalho —
 Dentro desse paradigma econômico que orientou as ações de quarenta anos para cá, a questão da política ambiental entra quase como políticas industriais que os estados vão implementar para fomentar a transição para a economia sustentável. E essas políticas industriais, se forem estabelecidas na forma de leis, se sobrepõem à agenda concorrencial explicitamente. Por exemplo, na Europa é possível criar exceções à aplicação do antitruste.

O problema é que no mundo real nada é tão explícito assim. No Brasil, acaba nas mãos do Cade interpretar se a exceção é válida ou não. Na prática, o que acontece é que as questões relacionadas a justificativas empresariais relacionadas à transição para essa economia ambiental de estratégias devem ser avaliadas pela autoridade concorrencial e levadas em conta nessa narrativa da teoria econômica.

Pode-se argumentar que se vai adotar a questão ambiental como sinônimo de incremento de qualidade para o consumidor. Vamos pressupor que no fundo determina-se um valor para o consumidor. E o valor que é possível determinar para o consumidor de maneira objetiva é o preço. Qualidade é mais subjetivo. Eventualmente, o consumidor pode achar um carro elétrico pior do que um não elétrico, mas vamos assumir que se tem uma fusão, por exemplo, entre duas montadoras de carros. E a justificativa dessa fusão são as eficiências relacionadas à transição para uma economia sustentável. Eventualmente, a autoridade concorrencial pode aprovar a fusão porque as eficiências vão ser repassadas para o consumidor na forma de qualidade, ainda que o preço do carro seja mais elevado. Isso vai ter que ser discutido. A autoridade concorrencial deverá ser notificada de ações entre empresas para desenvolver um determinado produto ou um novo processo produtivo economicamente mais sustentável, que vai criar padrões que vão ser utilizados pela indústria como um todo. E é preciso ter cuidado com o greenwashing. Por exemplo, promover uma prática que tenha efeitos anticompetitivos, mas embalada com justificativas ambientais que não são verdadeiras, para ver se passa pela autoridade concorrencial.

ConJur — Como diria que é o posicionamento da esquerda e da direita sobre questões de antitruste?
Carvalho —
 Uma coisa é a esquerda e a direita dos Estados Unidos, outra coisa é a esquerda e a direita do Brasil. Lá, a direita teve sempre o posicionamento muito alinhado com a vertente mais conservadora, com a escola de Chicago, um alinhamento com uma ideia muito forte de preservação do livre mercado — na dúvida, não se deve intervir. Já a esquerda nos Estados Unidos, os liberals, apostam no método de bem-estar econômico, bem-estar social, mas tentando criar teorias mais interventivas, como os neobrandesianos. Essas intervenções ocorrem via defesa da concorrência, via uma lógica de proteção do trabalhador, via uma lógica de proteção do pequeno concorrente, com uma ideia de diluição do poder de mercado.

No Brasil e demais países em desenvolvimento, é um pouco diferente. Porque a direita vai nessa linha que eu mencionei dos EUA, mas a esquerda tem uma visão do Estado como aquele que vai estruturar um processo de superação do subdesenvolvimento, uma lógica mais desenvolvimentista. E obviamente dentro de um ambiente democrático. Acaba vindo a necessidade, muitas vezes, de promover, estimular o crescimento de empresas nacionais, na linha de uma disputa no mercado global. Ou em uma linha de conquista de escala ou promoção de setores que tenham maior complexidade econômica, que tenham maior valor agregado. Para a esquerda, o Estado tem que estimular isso de algum modo. E ao estimular isso, eventualmente patrocina o crescimento dessas empresas ou desses setores. E isso talvez acabe por outras vias chegando a um ponto meio parecido com a visão conservadora. Mas com nuances, claro.

ConJur — Os EUA lideraram a digitalização via Vale do Silício, só que o passo da inteligência artificial parece que a China está num ritmo mais acelerado. Tanto que o fundador do Google liderou um grupo bipartidário no Congresso e fez um relatório para que seja feita uma política nacional de inteligência artificial. Como isso vai impactar a agenda antitruste americana?
Carvalho —
 Recentemente, um relatório de mais de 700 páginas foi produzido pela Comissão de Segurança Nacional para Inteligência Artificial dos EUA. O documento, que foi coordenado pelo ex-presidente-executivo do Google Eric Schmidt, traça estratégias para enfrentar os chineses no desenvolvimento de inteligência artificial. Embora não entrem muito a fundo na discussão antitruste, eles claramente investem em uma lógica para que eles tenham uma estratégia de inteligência artificial que seja compatível com o que se precisa para ganhar a disputa com a China. O relatório é explícito em afirmar que, para os EUA ganharem essa disputa com a China, não dá mais para terem um Estado desenvolvimentista no armário, não dá para terem uma política industrial baseada só nas estratégias de defesa, que depois se expandam para a economia como um todo. E foi o que aconteceu lá atrás com a internet, wi-fi, GPS, touch screen — todas essas tecnologias são produtos de estratégias de defesa. O relatório sustenta que não é mais possível promover um desenvolvimento derivado de estratégias de defesa, porque inteligência artificial é uma tecnologia penetrante, que vai contaminar a sociedade como um todo, que deve contaminar todos os mercados, todas as dinâmicas. E esse é um processo interativo, cooperativo, que tem que ser aberto, que não pode ficar encapsulado dentro de uma lógica de defesa e dentro de poucas empresas, dentro do cluster do Vale do Silício. A política concorrencial que os EUA estão implementando agora, de certo modo, é coerente com esse pressuposto. É uma política concorrencial que está inserida em uma estratégia de política industrial mais ampla.

ConJur — Quais são as principais questões concorrenciais envolvendo plataformas como o Uber?
Carvalho —
 Cada plataforma tem características muito específicas. Há situações em que a plataforma estabelece o preço final do serviço que vai ser prestado para o consumidor, como o caso o Uber ou de outros aplicativos de mobilidade urbana. Há plataformas que estabelecem a sua taxa de mediação, mas o preço é determinado pelo outro lado da plataforma, como o caso do Airbnb, por exemplo. E há situações em que as plataformas auferem renda só de um lado, o deles, como, por exemplo, as redes sociais, como o Facebook, que aufere renda de publicidade, mas não cobra do consumidor. Então é preciso olhar cada situação específica.

A questão das plataformas é que, em vários modelos, o mercado tomba para um lado, dependendo da dinâmica competitiva que se estabelece, das externalidades de rede, como elas se configuram. Não há uma competição entre vários players, mas uma competição pelo mercado. Então há uma tendência de que o modelo de negócio que se estabelece no primeiro momento faz com que todo o mercado caia na direção dele. E aí, para alguém competir, terá que competir de um jeito diferente, criando algo diferente do que que já existia. Por exemplo, na transição do Orkut para o Facebook. Naquele momento, havia várias barreiras de entrada, porque era um modelo de plataforma que colocava muito valor no fato de se ter pessoas nela. Quanto mais pessoas havia na plataforma, mais ela crescia em valor. Para ganhar desse modelo, era preciso fazer algo diferente. Não bastava aparecer como concorrente fazendo a mesma coisa, isso não iria extrair as pessoas do Orkut. Quando se consolidou e extraiu essas pessoas do Orkut, o mercado tombou na direção do Facebook.

Essas plataformas podem controlar o processo de inovação para impedir a entrada de concorrentes. Outra questão é a situação em que essas empresas que competem criam uma estratégia que, do ponto de vista do consumidor, talvez não seja a melhor forma de se competir. E aí pode haver uma discussão sobre uma espécie de concorrência regulada. O que é a concorrência regulada? É o Direito Concorrencial estabelecendo modelos de competição que são adequados ou que não são adequados. Isso é algo que já acontece nos cenários europeus e americano. As autoridades impõem regras que têm que ser seguidas, ainda que limitem um pouco o desenho competitivo do mercado.

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2021-out-03/entrevista-vinicius-marques-carvalho-ex-presidente-cade