ESTADO DA ECONOMIA

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Na última quinta-feira (19/8) foi lançado um manifesto da Rede de Professores e Pesquisadores de Direito Econômico [1]. Ao mesmo tempo, ocorreu um seminário de três dias de duração, intitulado "Planejamento e Desenvolvimentismo: uma Realidade Possível". O evento reuniu diversos professores de direito econômico e contou com a organização científica de Giovani Clark (UFMG e PUC de Minas), Ricardo Antônio Lucas Camargo (UFRGS), Maria Luiza de Alencar Mayer Feitosa (UFPB), Gilberto Bercovici e Leonardo Alves Corrêa (UFMG), além de uma tocante homenagem ao pai da disciplina, professor Washigton Albino Peluso de Souza, realizada pelo professor Eros Grau.

Na oportunidade, proferimos palestra sobre reformas neoliberais. Aproveitamos esta coluna para divulgar as linhas gerais de nossa fala.

O Direito Econômico, como exercício teórico de descrição e compreensão das normas jurídicas que buscavam a organização da vida econômica, é recente. A disciplina é marcada por seu contexto histórico, das grandes transformações do capitalismo do final do século 19 até a primeira guerra mundial.

Seu advento e reconhecimento não foram unânimes e, ainda hoje, não são muitas as faculdades que possuem em sua grade curricular obrigatória esse estudo, a despeito da tradição de ordens econômicas constitucionalizadas no Brasil desde a Constituição de 1934. Entre suas características importantes, e porque não afirmar, desafios, está a relação íntima com a Economia. O Direito Econômico é a disciplina da organização dos mercados, na feliz expressão de Geraldo Vidigal. Nele, estudamos as intervenções sobre o domínio econômico.

A elaboração de constituições nacionais de caráter cada vez mais social, que não prescreviam tão somente regras de atribuição de competência, mas verdadeiros objetivos a serem perseguidos pelo Estado, é marca da transformação do Direito e da necessidade de estudar, juridicamente, os instrumentos e técnicas dessa atuação.

Alguns dos objetivos da ordem econômica brasileira são marcantes, como o dever do Estado de buscar o pleno emprego, característica do intervencionismo econômico teorizado por Keynes e das conquistas dos movimentos sociais. Ao lado desse, não se pode esquecer da preocupação do texto constitucional com a redução das desigualdades regionais e sociais. Por fim, deve-se mencionar a positivação da difícil relação entre capital e trabalho, importantes categorias da economia política, no caput do artigo 170 da nossa Constituição.

Diante desse quadro, é normal que nós, professores de Direito Econômico, por estudarmos a ordem econômica brasileira que prescreve objetivos transformadores da República, aceitemos com naturalidade o dever do Estado de intervir no processo econômico. Parte-se do texto posto para compreensão dos desafios de nossa nação.

Por óbvio, o direito econômico não pressupõe uma homogeneidade ideológica. Visões liberais podem ser elaboradas, ao lado ou em oposição a visões, por assim dizer, mais desenvolvimentistas. Particularmente, e afirmando em nome próprio, temos as nossas predileções e, do ponto de vista jurídico, há uma política econômica positivada em sede constitucional que autoriza a vontade política de concretizá-la.

Preocupa-nos, contudo, o reducionismo, a ingenuidade (ou seria malandragem) e a falta de parâmetros com que certo anarco-ultraliberalismo busca se impor como doutrina e política.

A defesa de uma pauta mais liberal é passível de ser imaginada, até mesmo pela constatação histórica de alternância de poder em regimes democráticos, mas as boas práticas liberais capitalistas de forma alguma dispensam a participação ativa do Estado o processo econômico. A ideia de um estado mínimo é de pouca aderência fática. Poucas nações desenvolvidas e por pouco tempo podem ser descritas como liberais em algum passado, mas, ainda assim, com uma generosidade semântica enorme ao afirmar que a atuação estatal seria mínima.

Nações organizadas e desenvolvidas não são liberais. Mire-se nos exemplos constantes de atuação dos Estados Unidos da América e até mesmo as nações líderes europeias. Não há nada em suas estratégias que se assemelhe ao discurso apaixonado de liberdade econômica que se propõe entre nós.

Reforma-se a legislação do Imposto de Renda para tentar barrar a erosão das bases tributárias e fuga de sede de empresas transnacionais. Veda-se a alienação de empresas estratégicas ou até mesmo alianças de transferência de tecnologia, o que caracteriza forte intervencionismo. Protege-se as próprias commodities, estabelecem-se alianças, quando não guerras, para permitir acesso a recursos naturais. Tudo isso nunca deixa de se fazer presente nas estratégias de países centrais, independentemente de pautas mais sociais e redistributivas, que se alternam em processo eleitoral pendular.

Entre nós, contudo, a visão anárquica e tresloucada busca desvalorizar empresas estatais para o seu sucateamento ou venda, o que não se recomenda sequer como atividade comercial básica, em que se busca o contrário, a valorização do produto que se oferta. O horror ao Estado, esse inimigo de todos nós, descrito de forma delirante como a fonte de todas as corrupções, abre espaço para a entrega de setores estratégicos de nossa economia, que nos permitiriam, ao menos, ter elementos concretos de sonho e imaginação de um país melhor.

A importância do estudo do Direito Econômico (e da economia política) entre nós reside nesse contexto civilizatório, de busca de informação, sem necessidade de homogeneização discursiva em torno do desenvolvimentismo, mas ao menos descrevendo criticamente as engrenagens de poder e regulação econômica.

A liberdade econômica como fim em si mesmo, a ânsia em transformar mortes em austeridade na gestão da seguridade social, de oferecer corpos e tragédia familiar em política sanitária, em reduzir pela metade benefícios tributários sem qualquer avaliação de resultados e de impacto, em tratar a constituição orçamentária como se fosse medida provisória e o sucateamento do investimento público são a ivermectina e a cloroquina jurídicas contemporâneas.

A ausência de empatia e a falta de vontade de ao menos copiar as nações capitalistas deveriam chocar. Não é que se propõem a fazer igual aos modelos exitosos, querem fazer pior, como nos lembra a música!

A discussão sobre reforma tributária ilustra bem esse ponto: busca-se a importação do que seria padrão OCDE de tributação sobre o consumo, mas, novamente, a importação é pela metade, pois se pretende uma alíquota que será a maior do mundo, afora as inúmeras contribuições de intervenção do domínio econômico que acabam funcionando, praticamente, como tributos sobre o consumo (telecomunicações, por exemplo).

Em relação aos empregadores, não foi melhor o projeto de reforma da tributação da renda. Visões limitadas, imediatismo fiscal e tendência de forte repercussão nas decisões das empresas (por exemplo, distribuição extraordinária de lucros e desinvestimento) são marcas do projeto apresentado. A proposta já surge prometendo mais um contencioso, ao ter a ânsia de alcançar lucros já gerados anteriormente nas distribuições de lucro posteriores.

Não há na mesa nenhuma discussão de alteração efetiva de nossa matriz tributária, de mudança do perfil econômico da tributação concentrada no consumo, que for marca das decisões econômicas da década de 60 do século passado.

O Direito Econômico ajuda-nos a compreender a organização econômica das nações e a relação entre poder e técnicas jurídicas de política econômica e pode auxiliar na compreensão histórica de como as nações mais desenvolvidas se organizaram e de quais são os desafios e particularidades do caso brasileiro. Ou seja, educação contra negacionismos de toda sorte.

 é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição, professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo, Fundação Getulio Vargas (FGV EESP), foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2021-ago-22/estado-economia-importancia-direito-economico-excessos-discurso-ultraliberal