MALABARISMO JURÍDICO

Por 

O Ministério Público Federal do Rio de Janeiro violou as atribuições da Procuradoria-Geral da República ao denunciar a possibilidade de tráfico de influência envolvendo ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União. Caberia, portanto, ao Supremo Tribunal Federal, e não ao juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, analisar e decidir sobre as acusações imputadas a um grupo de advogados sobre supostos desvios de dinheiro da Fecomércio, do Sesc e do Senac para compra de decisões no STJ e no TCU.

Esses são os argumentos apresentados por um grupo de seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil em reclamação levada ao STF que pede a suspensão dos efeitos da homologação da delação premiada de Orlando Diniz, de forma cautelar, e o envio do material ao Supremo; e, no mérito, o reconhecimento da competência do STF para processar o caso e a declaração de nulidade das decisões da 7ª Vara Federal do Rio.

O próprio MPF do Rio narrou que, ao se constatar a menção a autoridades com foro por prerrogativa de função, encaminhou despacho à PGR, órgão responsável pela análise de investigação nesse tipo de caso.

A resposta da PGR não foi divulgada porque os autos da delação estão em sigilo, mas o MPF afirmou, resumidamente, que a PGR negou o prosseguimento da investigação por entender pela "inviabilidade de se instaurar investigação criminal apenas com base no relato do requerente" (ou seja, a PGR não quis abrir procedimento com base na delação de Diniz).

Também segundo o MPF, a PGR "fez questão de ressaltar que as conclusões do mencionado documento não afetavam ou impediam eventual realização de acordo de colaboração pelos órgãos do Ministério Público com atuação nas instâncias ordinárias, em relação aos fatos que não digam respeito a pessoas com foro por prerrogativa de função perante o STF".

A "lava jato" do Rio, então, resolveu a questão excluindo os anexos que citavam os ministros de tribunais superiores, e acrescentando que, para fazer isso, foi preciso considerar que os crimes imputados a autoridades com foro não ocorreram, já que a PGR decidiu não prosseguir com as investigações.

Para a OAB, a explicação não se sustenta, e o MPF não poderia ter interpretado a negativa da PGR da forma que fez. "Os fatos predominantemente a todos imputados, como se vem demonstrando, correlacionam-se à existência de contratos de prestação de serviços advocatícios alegadamente fictícios, celebrados com a finalidade de propiciar o pagamento de vantagens indevidas a autoridades com foro por prerrogativa de função nessa col. Suprema Corte", afirma a reclamação.

Em resumo, para a OAB, o MPF precisou mutilar o quadro fático para dizer que os advogados cometeram corrupção ativa sem que houvesse sujeito da corrupção passiva, já que não é imputado crime às autoridades com foro — se fosse, não caberia ao MPF fazê-lo.

Além disso, mesmo que a PGR tenha autorizado o MPF a celebrar o acordo para investigar acusados sem foro, o caso específico que embasa a denúncia não se enquadraria nesse critério, já que os advogados foram acusados justamente de vender influência junto aos ministros.

Usurpação de competência
Ao aceitar a denúncia contra 26 investigados, tornando-os réus, o juiz Marcelo Bretas justificou a própria competência com base em dois argumentos. Um deles é a "conexão intersubjetiva e instrumental" do feito a outros casos da "lava jato" do Rio. O outro é o fato de que não foram imputadas condutas ilícitas a autoridades com foro. 

A reclamação da OAB cita precedente do próprio STF para sustentar que o juiz não poderia ter decidido sobre o andamento deste processo. No HC 151.605/PR, relatado por Gilmar Mendes, a 2ª Turma do Supremo decidiu que "quanto à prerrogativa de função, será competente o Juízo mais graduado, observadas as prerrogativas de função do delator e dos delatados".

Também destaca que a turma decidiu pela "legitimidade da autoridade com prerrogativa de foro para discutir a eficácia das provas colhidas mediante acordo de colaboração realizado sem a supervisão do foro competente. A impugnação quanto à competência para homologação do acordo diz respeito às disposições constitucionais quanto à prerrogativa de foro".

Pelo raciocínio desenvolvido na reclamação, se o MPF não poderia ter apresentado uma denúncia de corrupção sem que houvesse sujeito passivo, o juiz não poderia aceitá-la sem incorrer em usurpação de competência do Supremo.

Assim, só a PGR poderia ter proposto a investigação, e só o STF poderia ter processado e julgado o pedido, graças à "incindibilidade processual e material entre as condutas imputadas [aos advogados acusados] e as autoridades que foram mencionadas pelo delator", "estando presente a figura da conexidade instrumental ou probatória a que alude o artigo 76, III, do Código de Processo Penal".

O artigo diz que "a competência será determinada pela conexão... quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração".

"Vale dizer, aqui, sob o ponto de vista processual e material, a relação é incindível, não se podendo admitir o fracionamento dessas condutas para serem eventualmente investigadas e julgadas em processos distintos perante instâncias distintas, com gravíssimo prejuízo para o exercício do direito de defesa e com superlativo risco para a higidez da jurisdição", afirma a reclamação.

Abuso sobre abuso
Em cobertura extensiva, a ConJur vem apontando abusos e ilegalidades flagrantes no ataque comandado por Bretas contra advogados. Com mandados genéricos e sem a devida especificação e individualização, foram ordenadas buscas em 33 endereços residenciais de advogados, com claro intuito de intimidação dos profissionais.

Além disso, Bretas invadiu a competência do Superior Tribunal de Justiça ao determinar o cumprimento de mandados na casa de três desembargadores: um deles com mandato no TRE de Alagoas; outro, do TRF-2, casado com uma advogada; e ainda uma terceira, do TRF-3, também casada com um advogado. O bote motivou manifestações de repúdio no meio jurídico.

O ataque ainda tem outros erros de competência, já que a Fecomércio é uma entidade privada e deveria ser investigada pela Justiça Estadual; e de imputação de crimes, já que seus dirigentes não podem ser acusados de corrupção nem peculato. Em outra vertente há quem entenda, como a OAB, que, por pretender investigar ministros do STJ e do Tribunal de Contas da União, a competência seria do STF.

Causou estranheza também o fato de Bretas ter aceitado a denúncia contra parte dos alvos praticamente ao mesmo tempo em que ordenou o cumprimento de mandados de busca e apreensão. Segundo especialistas, ou a denúncia estava bem fundamentada, dispensando a busca, ou ainda precisava de elementos comprobatórios, e não deveria ter sido acatada. O Ministério Público Federal do Rio alega que as duas frentes foram abertas porque a investigação ainda está em curso.

O ataque se baseia na delação do ex-presidente da Fecomércio do Rio de Janeiro. O empresário Orlando Diniz já foi preso duas vezes e vinha tentando acordo de delação desde 2018 — que só foi homologado, segundo a revista Época, depois que ele concordou acusar grandes escritórios de advocacia. Em troca da delação, Diniz ganha a liberdade e o direito de ficar com cerca de US$ 250 mil depositados no exterior, de acordo com o MPF do Rio.

Trechos vazados da delação de Diniz ainda mostram que o empresário foi dirigido pelo Ministério Público Federal do Rio no processo. Em muitos momentos, é uma procuradora quem explica a Diniz o que ele quis dizer. Quando o delator discorda do texto atribuído a ele, os procuradores desconversam, afirmando que vão detalhar nos anexos.

Por fim, Bretas tentou bloquear quantias exorbitantes dos escritórios e dos advogados. Em investigação de supostos desvios de R$ 151 milhões, os bloqueios determinados pelo juiz ultrapassaram R$ 1 bilhão, e só não foram efetivados devido a um erro no sistema do Banco Central. Ele justificou os valores aplicando a cobrança de "danos morais coletivos" ao montante que teria sido recebido ilegalmente por escritório, o que não poderia ter sido feito em ação penal, segundo entendimento da 2ª Turma do Supremo.

Clique aqui para ler a reclamação
Rcl 43.479 

 é editora da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico