OPINIÃO

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Uma nova interpretação do artigo 142 da Constituição tem gerado debates acalorados no meio jurídico. Do texto "As Forças Armadas (...) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem" vem-se extraindo permissão para uma suposta "intervenção militar" ou, em vernáculo mais suavizado, a atuação das Forças Armadas como poder moderador (cf. aqui e aqui) no caso de um poder "invadir a competência" de outro.

A controvérsia e a repercussão gerada em torno do tema, no entanto, deixaram de abordar o problema subjacente que a proposta hermenêutica queria resolver: quem é competente para controlar os ministros do STF? Em que ocasiões se pode fazê-lo? De que maneira?

Esse vazio é criador e criatura de aberrações. Não é de hoje que o Poder Judiciário é criticado pela tradição de limitadas investigações e punições de juízes. De tão raros e reservados que são esses processos, quase não se fala no regime jurídico da responsabilização de magistrados da Corte Máxima. Como consequência, alguns pensam que sequer existe accountability para os ministros do STF e que esses podem fazer tudo.

Desde logo, convém registrar que resulta impensável e inconcebível usar o artigo 142 da CF para transferir o controle do STF às Forças Armadas, pois isso violaria a separação dos poderes, princípio fundamental da república (artigo 2º). Na prática, o emprego da referida norma constitucional equivaleria a suprimir o STF, atentando contra uma cláusula pétrea (artigo 60, §4º, inciso III) e fazendo o presidente da República incorrer em crime de responsabilidade, atacando o livre exercício do Poder Judiciário (artigo 85, inciso III).

No entanto, isso não cria um salvo-conduto para que os ministros do STF possam fazer o que quiserem sem responsabilização. Mesmo os que exercem a jurisdição constitucional são passíveis de falhas e críticas, mas cujo controle deve ser feito única e exclusivamente nos termos previstos na Constituição e na lei.

Nesse sentido, deve-se recordar que os ministros do STF estão sujeitos à responsabilização política ou impeachment pelo Senado Federal, a quem compete privativamente julgá-los por crime de responsabilidade (artigo 52, inciso II). O rito segue a Lei nº 1.079/50, a condenação depende do voto favorável de dois terços dos votos do Senado Federal e a sanção consiste na perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis. Embora esse mecanismo seja o mais lembrado, não é o único.

Há o regime de responsabilização criminal, que seguirá o rito da Lei nº 8.038/90. Nesse caso, os ministros do STF também se submetem ao julgamento dos próprios pares nos crimes comuns, conforme o artigo 102, inciso I, alínea "b", da CF, cuja competência também se estende para o julgamento de ação de improbidade administrativa conforme a questão de ordem na Pet nº 3211. Quando o crime comum for de ação penal pública, a iniciativa cabe ao procurador-geral da República, de ofício ou provocado pelo ofendido (via representação), conforme for o caso.

Do ponto de vista disciplinar, os ministros do STF ainda se submetem à Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional, LC nº 35/79), cujas disposições, nas palavras do próprio ministro Gilmar Mendes, "constituem um regime jurídico único para os magistrados brasileiros" [1], pelo que resultaria impossível deixar de fora os próprios ministros do STF, como magistrados que são.

Com base na Loman, artigo 42, podem ser aplicadas as penas de disponibilidade e de aposentadoria compulsória (aqui, refere-se à pena disciplinar, não à modalidade de inatividade a que se refere o artigo 40, inciso II, da CF, aos 75 anos de idade, embora ambas tenham o mesmo nomen juris). Pelo parágrafo único do artigo 42, desembargadores e ministros não estão sujeitos às penas de advertência e de censura. Já a pena de remoção compulsória (de uma turma para a outra) se mostra inviável no STF, pois, na prática, implicaria uma permuta.

Como sabido, a diferença entre as penas de disponibilidade e de aposentadoria compulsória se refere à possibilidade de retorno ou não para o cargo, já que a disponibilidade implica um afastamento temporário (por pelo menos dois anos), ao passo que a aposentadoria compulsória é definitiva.

Normalmente, as penas disciplinares são aplicadas pelo próprio tribunal a que está vinculado o juiz ou pelo Conselho Nacional de Justiça. Conforme a decisão na ADI nº 3367, contudo, o CNJ não tem qualquer competência sobre o STF e seus ministros, sendo este o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito.

Assim, embora não atue o CNJ, o próprio Pleno do STF pode fazer as vezes de órgão corregedor — atuando de ofício ou mediante representação fundamentada do Poder Executivo ou do Legislativo, do Ministério Público ou do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil — com vistas à imposição das penas disciplinares, aplicando, no que couber, o rito do artigo 27 da Loman. A representação poderá ser rejeitada liminarmente por manifesta improcedência.

Em sendo aceita, inicia-se o processo administrativo, assegurada a ampla defesa, sendo possível, a partir da instauração do processo, ou no curso dele, determinar-se o afastamento do ministro do exercício das suas funções, sem prejuízo dos vencimentos e das vantagens, até a decisão final (artigo 27, §3º, da Loman), que deverá ser tomada pelo voto da maioria absoluta dos membros do tribunal (artigo 93, inciso X, da CF).

Para infrações disciplinares graves, ainda seria possível a demissão ou perda do cargo. A vitaliciedade do artigo 95, inciso I, da CF — também aplicável aos ministros do STF, inclusive desde a posse — garante que a perda do cargo só possa se dar por sentença judicial transitada em julgado. Para isso, seria necessário o ajuizamento de uma ação civil própria, cuja iniciativa, em se tratando de um ministros do STF, cabe ao procurador-geral da República. Embora não haja previsão expressa no artigo 102 da CF, não há dúvida de que a competência para processar e julgar originariamente essa ação será também do próprio STF.

O problema da accountability dos ministros do STF é que — no atual regime sancionador — todas as medidas existentes implicam afastar o magistrado de suas funções. Talvez seja por isso que o sistema não venha funcionando na prática. Faltam sanções mais amenas que permitam a responsabilização do ministro sem necessariamente apartá-lo do cargo, em um sistema de penas graduais.

Seja como for, se tais mecanismos de controle dos ministros do STF não funcionam — ou porque soam demasiado drásticos, ou porque ensejam comportamento estratégico ou atuação corporativa por parte dos controladores —, que se criem outras formas de repressão para as condutas menos graves, mas que funcionem de forma efetiva — como, por exemplo, a advertência, a censura, a remoção de relatoria ou outras ideias que começam a surgir.

O que não parece admissível é uma situação em que nenhum desses controles funcione na prática e os ministros do STF fiquem sem qualquer contenção. A simples perspectiva de abertura de um processo de responsabilização já poria freios a possíveis desvios. A certeza do castigo — nem que seja sob a forma do desgaste público — é o que previne os excessos e, parafraseando Cesare Beccaria, a eloquência das paixões [2].

É verdade que o artigo 41 da Loman estabelece que, salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir. No entanto, como bem consignado pelo STJ no RMS nº 15.316, "implícita nessa norma está a exigência de que essas mesmas decisões não infrinjam os valores primordiais da ordem jurídica e os deveres de conduta impostos ao juiz com o desiderato de assegurar a sua imparcialidade".

Aqui, não se está defendendo que os ministros do STF devam ser punidos por quaisquer atos em específico, mas apenas se questiona que na ordem histórica inaugurada pela Constituição de 1988 sequer foi aberto um único processo administrativo ou judicial para responsabilização de ministro do STF, em que, garantindo-se a ampla defesa e devido processo legal, fosse apurada eventual falta cometida.

O certo é que esse estado de coisas — de não responsabilização dos ministros do STF — é terreno fértil para atuações e interpretações heterodoxas da Constituição, por todos os lados, sendo a esdrúxula intervenção militar com base no artigo 142 da CF só mais um exemplo de solução completamente errada para um problema complexo.

 

[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p.1155.

[2] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 60. 

 é advogada do Senado Federal, professora voluntária na Universidade de Brasília, doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) e doutora e mestre em Direito pela Universidade de Brasília.

Revista Consultor Jurídico