Ao lado da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem foi coautora do pedido que resultou na cassação do mandato do então presidente Fernando Collor, em 1992

(Foto: Fernando Brazão/Agência Brasil)

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) conduz internamente um processo para decidir, em agosto, se apresenta ou não um pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. Para embasar a decisão, a entidade abriu espaço para a manifestação do presidente e do ex-ministro Sergio Moro. Em resposta, Moro reafirmou as acusações contra Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal. O presidente, por sua vez, ainda não retornou o ofício enviado pela OAB, mas também terá direito à defesa.

Ao lado da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem foi coautora do pedido que resultou na cassação do mandato do então presidente Fernando Collor, em 1992.

“Sinto que a posição majoritária da ordem hoje é que, diante desse isolamento social, o combate à pandemia deve ser a prioridade. Não significa que o processo esteja parado. Estamos avaliando se há crime de responsabilidade e provavelmente vamos votar a posição da ordem logo que voltarem as sessões presenciais, creio que na primeira sessão em agosto”, afirmou o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, ao Congresso em Foco.

Na entrevista exclusiva (veja a íntegra mais abaixo), Santa Cruz defende a união da sociedade, da esquerda à direita, para conter o avanço do que ele chama de “marcha da insanidade”.

A OAB prepara, ao lado de outras entidades, como a própria ABI, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), centrais sindicais e recém-criados movimentos de defesa da democracia, um ato virtual em apoio ao Supremo Tribunal Federal (STF) na próxima segunda-feira (8). O grupo articula a formação de uma grande rede, com interlocuções em toda a sociedade, inclusive no Congresso, para confrontar ameaças autoritárias do presidente.

“Cabe a todos os democratas resistir a essa marcha de insanidade. O presidente não cuida da pandemia, não liga para a vida dos trabalhadores, nem para os 30 mil mortos pela covid. Enquanto isso, anda a cavalo. É um quadro apavorante. A história vai julgar quem se omitiu num momento tão difícil”, diz.

Para Santa Cruz, o fato de as pesquisas indicarem que Bolsonaro tem hoje apoio popular de cerca de 30% do eleitorado, índice bem acima do que tinham Collor e Dilma quando caíram, não inviabiliza a eventual cassação do presidente.

“Não dá é para levar adiante um governo que está trabalhando permanentemente contra as instituições. O presidente é extremamente coerente. Se tem uma coisa que não dá para acusar o Bolsonaro é de ser incoerente. Ele tem trabalhado para fazer o que sempre defendeu tortura, garimpo ilegal, devastação das matas, o atraso da hiperexploração, pelos setores que ainda fazem uso da escravidão. Para isso ele trabalha todos os dias”, critica.

“O filho dele, o Eduardo, que é seu principal porta-voz, tanto que seria indicado a embaixador, diz que não é mais questão de ‘se’ mas quando acontecerá a intervenção militar”, adverte.

Em parecer jurídico divulgado na terça-feira (2), a OAB aponta que o artigo 142 da Constituição Federal, invocado por Bolsonaro e aliados ao mencionarem a possibilidade de uma intervenção militar, não autoriza esse tipo de iniciativa. “Isso é mais uma distorção dessa marcha pelo golpe. Isso não é jurídico. Pode ser defendido pelos totalitários, que defendem a via da ruptura”, afirma o advogado.

Para Felipe Santa Cruz, Bolsonaro tenta cooptar as Forças Armadas e o procurador-geral da República, Augusto Aras. “Hoje temos um governo praticamente militar. Nem na ditadura tínhamos tantos militares. É preciso separar os militares que estão no governo do demais. Discordo do excesso, mas não acho que há ilegalidade. Mas estou muito preocupado com esse trabalho de cooptação que ele faz historicamente, lotando nos gabinetes da família dele pessoas ligadas às milícias e policiais criminosos.”

No caso de Augusto Aras, para quem Bolsonaro já acenou publicamente com uma vaga no Supremo, Santa Cruz sugere ao procurador-geral que registre em cartório que não aceitará uma eventual indicação ao cargo. “Isso iria estancar dúvidas e fortalecer muito a posição do PGR. Hoje há uma justificada atenção, até porque o Dr. Aras foi escolhido fora da lista tríplice, o que sempre será um problema interno.”

Na avaliação do presidente da OAB, Bolsonaro tira proveito político da pandemia, que já matou mais de 31 mil brasileiros, ao minimizar sua gravidade. “O presidente se exonerou de combater a pandemia e liberou sua agenda. Bolsonaro é o único brasileiro livre para ir a todo lugar. Faz atos sem grande representatividade, mas são únicos nas ruas. Deixa seus adversários responsáveis em um dilema porque não querem expor as pessoas ao vírus. A pandemia é a grande aliada de Bolsonaro”, considera.

Em julho do ano passado, Santa Cruz interpelou judicialmente Bolsonaro para que esclarecesse declarações sobre a morte do seu pai, Fernando Augusto Santa Cruz. Bolsonaro havia dito que poderia explicar ao presidente da OAB como o pai dele desapareceu durante a ditadura, na década de 70. Contrariando as conclusões da Comissão da Verdade e sem apresentar provas, Bolsonaro disse que o pai do advogado havia sido assassinado por colegas da Ação Popular, e não por militares. A interpelação foi arquivada depois de o presidente afirmar que não teve a intenção de ofender Santa Cruz.

Como o senhor vê o surgimento de movimentos pela defesa da democracia nos últimos dias?

Nós, a OAB, a CNBB, a ABI, as centrais sindicais e todos esses movimentos que estão soltando manifestos, como o Basta, Somos70Porcento, o Todos Juntos, ativistas na defesa da democracia, estamos tentando criar uma coordenação para evitar sobreposição de atos e datas, para fortalecer esses movimentos e agir em rede na mobilização do país, na resistência à marcha de insanidade liderada pelo presidente.

Como será essa atuação conjunta na prática?

Vamos fazer um ato grande na segunda-feira (8) em defesa do STF. Vamos criar uma coordenação para a comunicação, falar com a juventude e usar as redes como dínamo para defesa da liberdade e da democracia. Na sexta teremos outra reunião preparatória para discutir os atos. Nesta terça foi nossa primeira conversa política. Queremos nos organizar como um guarda-chuva para não impedir o nascimento de outros movimentos espontâneos na sociedade, que devem ser zelados.

A OAB foi protagonista no pedido de impeachment do ex-presidente Collor. Dividiu-se no apoio ao impeachment de Dilma. Que posição vai tomar em relação a Bolsonaro? Vai apoiar? Em que circunstâncias?

Sinto que a posição majoritária da ordem hoje é que, diante desse isolamento social, o combate à pandemia deve ser a prioridade. Não significa que o processo esteja parado. Estamos avaliando se há crime de responsabilidade e provavelmente vamos votar a posição da ordem logo que voltarem as sessões presenciais, creio que na primeira sessão em agosto. Por enquanto só temos reuniões telepresenciais. Estamos trabalhando com as datas do Governo do Distrito Federal para a nossa volta.

Pelas investigações em andamento, já está caracterizado que o presidente cometeu crimes?

Não está pronto. Há um grupo de estudos constitucionais integrado pelos principais constitucionalistas brasileiros que está fazendo essa avaliação. Pediram provas do inquérito relatado pelo ministro Celso de Mello. Oficiamos Bolsonaro e Moro para que falassem nos autos. Moro reafirmou todas as acusações feitas contra o presidente. O processo está sendo instruído com o direito à ampla defesa e ao contraditório.

É possível cassá-lo enquanto ele ainda tem o apoio de cerca de 30% da população e o país enfrenta o coronavírus?

Não dá é para levar adiante um governo que está trabalhando permanentemente contra as instituições. O presidente é extremamente coerente. Se tem uma coisa que não dá para acusar o Bolsonaro é de ser incoerente. Ele tem trabalhando para fazer o que sempre defendeu: tortura, garimpo ilegal, devastação das matas, o atraso da hiperexploração, pelos setores que ainda fazem uso da escravidão. Para isso ele trabalha todos os dias. O filho dele, o Eduardo, que é seu principal porta-voz, tanto que seria indicado a embaixador, diz que não é mais questão de “se” mas quando acontecerá a intervenção militar. Cabe a todos os democratas resistir a essa marcha de insanidade. Ele não cuida da pandemia, não liga para a vida dos trabalhadores, nem para os 30 mil mortos pela covid. Enquanto isso, ele anda a cavalo. É um quadro apavorante. A história vai julgar quem se omitiu num momento tão difícil.

O senhor vê hoje o presidente Bolsonaro concluindo o mandato? Uma eventual saída dele seria mais viável pelo Judiciário ou pelo Congresso?

Espero que ele modere sua posição. Ele tem de entender que precisa governar para todos.

Há um número grande e crescente de militares no governo. Nessa terça a OAB divulgou parecer contestando a constitucionalidade uma intervenção militar, como sugerem apoiadores do presidente…

Isso é inconstitucional. Poder moderador era da monarquia. O imperador tinha poder moderador. A Constituição Federal deixa claro que não há essa função por parte das Força Armadas, isso é mais uma distorção dessa marcha pelo golpe. Isso não é jurídico. Pode ser defendido pelos totalitários, que defendem a via da ruptura. Estamos certos sobre isso. A comissão de estudos constitucionais concluiu isso e vamos submetê-lo ao conselho federal.

Na sua avaliação, há possibilidade de as Forças Armadas apoiarem uma intervenção?

As Forças Armadas vêm recuperando imagem de credibilidade com operações internacionais. Sou admirador do trabalho do general Braga Netto no Rio, na intervenção do estado.

As Forças Armadas compreenderam a história e terminaram sozinhas. Ficou com todo o ônus da ditadura, que não foi só dela, porque foi uma ditadura civil militar.

Não há problema em nomeação de militares para cargos importantes. São muito competentes em áreas como logística e infraestrutura. Agora, quando começa aparelhamento total da máquina, a cooptação do médio oficial, do capitão, do sargento, quando começa discussão ideológica, as Forças Armadas não podem participar disso. Elas têm função de Estado na defesa da Constituição Federal.

Mas o governo está repleto de militares…

Hoje temos um governo praticamente militar. Nem na ditadura tínhamos tantos militares. É preciso separar os militares que estão no governo do demais. Discordo do excesso, mas não acho que há ilegalidade. Mas estou muito preocupado com esse trabalho de cooptação que ele faz historicamente, lotando nos gabinetes da família dele pessoas ligadas às milícias, policiais criminosos. Ele sempre fez trabalho de cooptação. Ele segue tentando cooptar, fazer acenos aqui e ali a pessoas mais ambiciosas e egoístas. Nunca é bom para instituições.

O senhor vê essa cooptação na Procuradoria-Geral da República?

Acho que ele [Augusto Aras] precisa acabar com essa tentativa de cooptação do presidente. Ir ao cartório e lavrar um documento que informe que: convidado, não aceitará a nomeação para ministro do STF. Isso iria estancar dúvidas e fortalecer muito a posição do PGR.

Hoje há uma justificada atenção, até porque o Dr. Aras foi escolhido fora da lista tríplice, o que sempre será um problema interno. A escolha dentro da lista vinha sendo observada desde 2003 e Jair Bolsonaro mudou essa tradição. Isso, claro, gera tensões sobre a independência do PGR face ao presidente da república.

Que resposta o STF deve dar nessa crise?

STF vem dando, cumprindo seu papel de julgar. Fomos três vezes ao Supremo na pandemia. Em uma para exigir que o governo cumprisse determinação da OMS e garantisse competência concorrente de estados e municípios. Fomos vitoriosos. Liminar foi confirmada pelo plenário por dez a um.

Fomos ao Judiciário pedir a garantia da Lei de Acesso à informação, pila da liberdade de imprensa hoje, quando ela precisa fazer controle dos gastos da pandemia. Fomos também ao Supremo para impedir o recolhimento compulsório de 250 milhões de dados telefônicos brasileiros previsto em uma medida provisória. Nas três vezes fomos vitoriosos. A lei e a Constituição têm de ser aplicadas, doa a quem doer, sem escolher quem.

O que o Congresso pode fazer para mudar isso?

O Congresso vem recuperando legitimidade, deputados já compreenderam que hoje é um mundo da informação. É bom e ruim. Porque folcloriza alguns debates, mas também dá mais transparência. Espero que cumpra sua tarefa com independência, que não se dobre em cooptação com troca de cargo, de verba, porque a gente sabe como isso termina. Acaba em prisões, em descrédito e desvalorização da democracia e do papel dos partidos. Tudo isso é muito grave para a democracia.

A Ordem não pretende representar contra o deputado Eduardo Bolsonaro?

Já fiz isso contra o pai dele, fui ao Conselho de Ética para pedir a cassação dele. A comissão entendeu que eu, que era presidente da OAB-RJ, não tinha legitimidade no episódio. Foi quando ele citou Brilhante Ustra no plenário no impeachment. Entenderam que a legitimidade era dos partidos. Espero que o Congresso advirta o deputado. Imunidade parlamentar é um instrumento importantíssimo que se fortaleceu no enfrentamento da ditadura, com o episódio do Djalma Marinho e do Márcio Moreira Alves. Prezamos por esse instituto. Mas ele não pode incitar crime. Na segunda, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) falou em homicídio em vídeo. Imunidade não é cheque em branco para parlamentar se transformar em criminoso.

Com essas mobilizações pela democracia, o senhor percebe que estamos entrando em nova fase?

Ele está se beneficiando da pandemia. O presidente se exonerou de combater a pandemia e liberou sua agenda. Bolsonaro é o único brasileiro livre para ir a todo lugar. Faz atos sem grande representatividade, mas são únicos nas ruas. Deixa seus adversários responsáveis em um dilema porque não querem expor as pessoas ao vírus. A pandemia é a grande aliada de Bolsonaro. Ele aproveita o momento para exercer essa liberdade. Vamos ver quando acabar a pandemia. Hoje há pelo menos 70% que não o apoiam. As pessoas vão cobrar dele o legado de morte, o abandono da vida das pessoas. Como o governo se reúne e não discute covid? Ele desarmou o Ministério da Saúde, demitindo o ministro Mandetta. Depois inviabilizou o ministro Teich. Não há médicos no ministério. Agiu de forma imperdoável, em um momento tão difícil para o país. O mundo enxerga no Bolsonaro o pior exemplo de líder diante da pandemia. Ele ultrapassou muito um concorrente muito forte, que é o presidente Donald Trump.

Há denúncias em cortes internacionais contra o presidente Bolsonaro. Há possibilidade de punição para ele?

A questão do meio ambiente vai se internacionalizar, vem aí boicote ao agronegócio brasileiro. Estão fazendo insanidade. É coisa de século 18 ou 17 com a devastação. Está acabando com a imagem do país no exterior. Recebo todo dia manifestações nesse sentido. Ainda vai gerar muito debate internacional.

Um dos manifestos divulgados no fim de semana foi o de um grupo de juristas, muitos com posições antagônicas em relação, por exemplo, à Lava Jato. Esse é o espírito da frente ampla?

Esquerda e direita. É assim que defendemos. Temos de ser movimento amplo dos democratas. Fora da democracia, não há campo para liberdade. Dentro da democracia, a alternância entre esquerda e direita é salutar. Tenho trabalhado 24h por dia. Nunca trabalhei tanto, mesmo exercendo isolamento, em casa há 80 dias. Estamos trabalhando, usando instrumentos limitados das redes. Não é o mesmo contato pessoal. Estamos conversando com a sociedade civil organizada, com ativistas, com quem tem responsabilidade neste momento histórico. Estava preocupado com certo silêncio e normalização dos absurdos. Não é o que vemos há uma semana na medida em que proliferam manifestos e manifestações contra o fascismo, o golpe e o autoritarismo. Isso é preventivo.

Fonte: Congresso Em Foco